A soteriologia é a chamada doutrina da salvação; mais uma daquelas partes espinhosas da Teologia Sistemática. Espinhosa porque coloca na pauta de reflexões e debates um tema que, de tão controvertido, quase sempre acaba por ser entendido apenas se for na base do dogma: é assim porque é assim e pronto. Todavia (e, para alegria minha, sempre existe um todavia!), não são todos os que recebem um dogma religioso sem crítica, por mais simplificada que esta seja.
Pensei no tema da salvação humana ao relembrar uma entrevista do genial antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro. Tomado por um câncer que teimou até que conseguiu nos tirar mais um privilegiado cérebro, Darcy deu uma entrevista ao jornalista Roberto D´Ávila, onde, além de falar do que mais entendia, Antropologia e formação do povo brasileiro, falou de religião. Falou da religião dos índios, da religião alheia, da religiosidade de sua própria mãe, que para ele era admirável, e, enfim, da sua própria.
Confesso que poucas vezes na vida eu senti tanta compaixão por alguém em relação às questões que tangenciam a espiritualidade, haja vista a declaração de Darcy Ribeiro de que gostaria muito de ter fé, mas que não conseguia ter. Na minha cabeça juvenil, aquilo não fazia o menor sentido; como é que alguém pede, clama, deseja intensamente ter fé e não consegue? Não consegue ou não pode? Eis a questão.
Segundo a doutrina católico-romana, seguida de perto por grande parte dos evangélicos, a fé é uma questão teologal, isto é, é uma espécie de "imposição" de cima para baixo, do Soberano D´us para os humanos.
Não depende, pois, de alguém querer tê-la, mas de o Soberano decidir derramar tal dom sobre um indivíduo. Isto, obviamente, nos remete ao corpus doutrinário calvinista, para o qual a decisão sobre a salvação humana - que segundo o texto bíblico só pode acontecer por meio da fé na obra de D´us, intermediada por Jesus Cristo - não cabe em nenhum aspecto ou momento ao ser humano. D´us decide e está consumado. Ponto.
Não depende, pois, de alguém querer tê-la, mas de o Soberano decidir derramar tal dom sobre um indivíduo. Isto, obviamente, nos remete ao corpus doutrinário calvinista, para o qual a decisão sobre a salvação humana - que segundo o texto bíblico só pode acontecer por meio da fé na obra de D´us, intermediada por Jesus Cristo - não cabe em nenhum aspecto ou momento ao ser humano. D´us decide e está consumado. Ponto.
Ponto? Aceitando o dogma pelo dogma, ponto. Sem aceitá-lo assim, reticências. Reticências porque o texto bíblico por várias vezes coloca o foco na participação humana no processo de salvação. Segundo a maioria dos textos que abordam a temática, é necessário que o ser humano diga "sim" à proposta divina. Não ser salvo é dizer "não" à tal proposta de D´us em Cristo.
Muitos, apressadamente, vão afirmar que a carta de Paulo aos efésios justifica o caráter teologal da fé, mostrando que o texto é claro quando diz que "pela graça sois salvos, mediante a fé, e isso não vem de vós, é dom de D´us, não de obras para que ninguém se glorie". Sim, é difícil confrontar tal passagem do capítulo 2 de Efésios. Todavia (outro todavia!), é preciso pensar a respeito de qual dom se está tratando no texto em questão, visto que temos ali graça e fé. Seria loucura ler "vocês são salvos, para ninguém se gloriar de si mesmo, pela graça, que é um dom de D´us, e isso é mediante a fé de vocês"?
Alguns poderão argumentar que minha tradução é forçada e que o dom oferecido é mesmo a fé. No entanto, abre-se espaço para outra problematização da questão, já que, se a fé é mesmo um dom teologal, não importando se a pessoa quer ou não, visto ser dada aleatoriamente pelo Soberano, que culpa tem de não crer aqueles aos quais foi negada a possibilidade de crer? Quero crer, mas, como D´us não deixa, como Ele não me permite, como me nega isso...
Antes da minha exclusão definitiva, gostaria de dizer que esta é apenas mais uma reflexão de um professor de Teologia Sistemática. Não é para ser levada tão a sério. Ou deveria ser?
liberdade, beleza e Graça...
3 comentários:
Excelente texto. Polêmico talvez? Mas, nos deixa a pensar. Realmente difícil confrontar a passagem de Efésios, mas nos leva a pensar.
Gosto do cuidado com que escreve, faz com seus textos sejam uma leitura prazerosa e ao mesmo tempo desconfortante, é uma contrariedade interessante. Fica a reflexão.
O texto trata de um problema insolúvel e que, basicamente divide a teologia católica da protestante. Na teologia católica, a fé é dada por Deus, e nesse caso, a pessoa não tem a liberdade de não tê-la. Na protestante (de um modo muito, mas muito abrangente), a fé é uma dimensão existencial, e está associada à pessoa mesmo, deste modo, em total liberdade, mas também em completa ruptura com o divino. Tillich tentou resolver isso dizendo que a fé é uma espécie de toque, isto é, algo sem conteúdo e que permite à existência humana perguntar pelo Ser-em-si. Para Barth a questão era a dimensão do imensamente outro, cuja relação estabelece a possibilidade de fé. A mística medieval tentava recuperar o conceito de união, mediante a escuridão da profundidade humana. Está e uma questão antiga. As cartas joaninas praticamente recolocam a questão da fé num lugar secundário, para estabelecer a união com o sagrado a partir do amor, que é a vivência comunitária, e não a partir da subjetividade da fé, tão explorada pelo mundo gnóstico e que acabava perdendo o "outro" como pessoa, enquanto o próprio possuidor do mistério divino se perdia na profunidade da experiência absoluta. Na verdade seria preciso caminhar nas expressões teológicas construídas, tanto da teologia católica, como na protestante, para se ter uma idéia do inatismo da fé. Rahner diz que o ser humano tem na profundidade de sua existência uma pré-apreensão de Deus, o Deus que coloca a pergunta por Ele no ser humano e ao mesmo tempo se dá como resposta.
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