Tratar as pessoas em situação de rua tem sido um desafio imenso para os gestores públicos das grandes cidades brasileiras. Repletas de usuários de crack, menores em conflito com a lei e viciados nas mais variadas drogas, ilícitas ou não, as ruas estão a clamar por posturas que coloquem em destaque a discussão entre o público e o privado, numa das mais difíceis reflexões acerca da vida contemporânea.
Quando a criminalidade aumenta, e sobretudo quando isso é percebido como fruto de ações de responsabilidade dessa população desprovida de políticas públicas que a possam retirar da situação de rua, atitudes antagônicas se apresentam, contemplando discursos que vão da visão socializadora do problema, com foco em políticas públicas, à visão higienizadora, muitíssimo cara à postura privatista das novas classes médias, tão preocupadas apenas consigo mesmas e com o bem estar dos seus "iguais".
A crise que se estabelece diz respeito a se considerar ou não o outro como um igual. Se o outro não é um igual, como aconteceu na Alemanha de Hitler, é possível eliminá-lo sem qualquer peso na consciência, visto que se estará fazendo até um favor à sociedade, que teima cada vez mais por "limpeza", seja ela étnica ou social. Não se focando a criação de CREAS - Centros de Referência Especializados de Assistência Social ou CRAS - Centros de Referência e Assistência Social, já que muito do recurso público deve ser ali alocado, o foco passa a ser uma visão mais "econômica" e que "limpa as cidades" daquilo que as "enfeia".
Nessa linha de pensar, um cidadão paulistano transmutou em ação a ideia higienizadora da nova classe média; num ato "solidário" para com um conhecido mendigo de sua região, o cidadão resolveu passear em seu carro pelas ruas infestadas de "pessoas a se eliminar" e doar uma garrafa de cachaça com um frasco de chumbinho (veneno para matar ratos) dissolvido no cobiçado líquido a ser consumido por um cidadão já desprovido de quase tudo.
O final antológico dessa macabra história é inspirador e merece novos materiais para discussões e debates, pois um verdadeiro "milagre" aconteceu; o mendigo não morreu, apesar da grande quantidade de chumbinho dissolvida na bebida. Isso porque a mendicância tem algo de sublime a ensinar a uma classe média privatista e higienizadora: jamais se usufrui sozinho de um sofrimento ou de uma benesse. O mendigo não tinha a mesma visão de mundo do cidadão que lhe ofereceu a bebida e dividiu o líquido com seus companheiros de rua. Final da história: ninguém morreu, apesar de todos terem passado mal, pois o veneno foi dividido entre várias pessoas. Moral de uma história que precisa, e muito, inspirar a todos: quem é solidário e atenta para o seu próximo jamais será morto por veneno para ratos. Chumbinho foi feito para matar apenas dois tipos de ser: os ratos e os que comem e bebem tudo sozinhos.
liberdade, beleza e Graça...