Foram motivos de escândalo para muitos brasileiros as decisões que foram o centro dos assuntos nos últimos dias, e que foram tomadas pela instância máxima da justiça de nosso país, o Supremo Tribunal Federal. As duas decisões últimas do STF coibem o uso indiscriminado de algemas em criminosos e liberam os candidatos "fichas-sujas" para participarem das próximas eleições, já que - em sua quase totalidade - tais indivíduos não foram condenados em todas as instâncias possíveis da lei brasileira. Não foi difícil ouvir da boca de muitos cidadãos indignados: "Para o pobre trabalhador, nada; para a bandidagem rica, tudo!". Até a conceituadíssima economista Míriam Leitão despejou sua indignação, na coluna que ocupa semanalmente em um importante jornal do país.
Apesar de - à primeira vista - parecer que toda razão deva ser dada aos revoltados eleitores e pessoas de bem de nossa nação, é preciso que uma reflexão mais aprofundada ganhe lugar aqui.
É sabido, lançando mão da Ciência Política, que a radicalização do princípio da igualdade colocou o Direito como foco da política e da vida social. Porém, apesar de o Direito ter invadido a esfera pública do mundo social, o mundo contemporâneo o reduziu - bem como as suas instituições - à mera função de controle social. O Direito passou, então, a ser o "lugar dos deveres". Para que se entenda a razão de tal acontecimento, é preciso refletir sobre aquilo que foi a base para a elaboração de uma série de construtos que hoje são dados como "muito naturais" e frutos de uma "evolução no pensar".
Percebendo a extremada hostilidade do mundo, tanto levando em conta a sua relação com a natureza como a relação com seus semelhantes, o homem buscou técnicas de sobrevivência e de defesa em um mundo hobbesiano do homo homini lupus (o homem é o lobo do homem). Para fugir disso, seria necessário um conjunto de regras que reduzissem os impulsos agressivos da humanidade, trazendo penas aos "desobedientes" e prêmios aos "enquadrados".
Outros pensadores contribuíram para ratificar a hipótese de Thomas Hobbes. Para Lucrécio, por exemplo, no estado de natureza os homens viviam more ferarum (como animais). Para Cícero, in agris bestiarum modo vagabantur (vagavam pelos campos como animais); em luta uns contra os outros, como queria Hobbes. A tese de John Locke, para quem "todos se encontravam em perfeita liberdade para dispor de suas posses sem pedir permissão a quem quer que seja", parece servir só mesmo para quem realmente tem as tais posses.
Num embate Hobbes/Locke, a sociedade brasileira se dividiu entre os subintegrados - para quem a justiça só serve para trazer os deveres a serem cumpridos e os sobreintegrados - para quem as instituições jurídicas só trazem direitos a serem usufruidos, já que esse grupo parece estar sempre acima dos deveres. É importante dizer, porém, que ambos os grupos estão vivendo a desigualdade social, carentes de uma das dimensões da justiça. Um não tem direito aos deveres e outro não alcança os favores dos direitos. Estão, pois, ambos, desenquadrados; desintegrados.
Sendo uma forte base para a confecção da justiça o que a hipótese hobbesiana defende, não deve ser motivo de indignação o fato de o cidadão ter agora conquistado o direito de não ser algemado, bem como o de não ser inelegível sem que todas as instâncias jurídicas sejam visitadas. Outros direitos ainda mais difusos como o de viver em um lugar sem a presença de emissão de gases poluentes ou o direito ao consumo já estão saindo da esfera da reinvindicação e, aos poucos, tornando-se direitos inalienáveis. A verdade é que a atual fase da modernidade clama por uma arena pública que traga mais direitos do que deveres, visto que Hobbes, Lucrécio e Cícero estão cada vez mais cedendo lugar a Locke, Rousseau e aos outros adeptos do homem como "bom desde o estado de natureza" e, portanto, merecedor dos mais variados direitos. A esfera pública deve, porém, estar cada vez mais atenta, pois tudo isso deve servir para todos; do Daniel Dantas ao José da Silva. É chegada, pois, a Era dos Direitos.
liberdade, beleza e Graça...
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