quarta-feira, 27 de outubro de 2010

"A Reforma Protestante e o imenso equívoco evangélico"

Está chegando aquele que deveria ser o dia mais importante para o segmento religioso evangélico, embora não seja nem lembrado como um dia de festa. Dia 31 de outubro é comemorado o dia em que o monge Martinho Lutero pregou as suas 95 teses na porta da Catedral de Wittenberg, na Alemanha, protestando contra os desmandos da Igreja Católica do século XVI.

Embora seja um dia em que se deveria festejar com toda sorte de comemorações, o dia que fecha o mês de outubro, mesmo entre os ditos protestantes, só consegue ser um dia de importação de cultura estadunidense, para que o chamado "dia das bruxas" traga suas brincadeiras, escondendo a potência do evento que mexeu radicalmente com as estruturas sociais do Ocidente, contribuindo também para instaurar a chamada Modernidade.

A pergunta que fica, porém, é: Por que a Reforma não tem nem de longe o efeito que deveria ter no segmento evangélico brasileiro? Simples; porque o povo evangélico brasileiro não é protestante. Ao contrário do que se pensa, os evangélicos são mais católicos do que em última instância pensam ser. Para provar tal tese, além de mostrar que o dia 31 de outubro não será dia de festa - a não ser por razões eleitorais, visto que teremos eleições presidenciais - intento descrever em poucas linhas as diferenças e semelhanças entre ser protestante e pensar ser protestante.

O tripé da Reforma, como é sabido, é a junção do sola fide com o sola gratia e o sola scriptura. Isto é, salvação somente pela fé, somente por graça e somente através das Escrituras Sagradas. E, para radicalizar ainda mais a situação, Lutero, bebendo na sabedoria aristotélica, apregoa o chamado "sacerdócio universal de todo crente". Isso sim foi considerado protestar no século XVI, pois a universalização do sacerdócio traria, sem titubeios, a queda da hierarquia da cúria romana.

O problema é: será que os cristãos entendem a dimensão de tais propostas luteranas? Penso que não e até entendo, pois o próprio Lutero tentou voltar atrás, uma vez que percebeu que ser protestante era algo para muito além do que ele mesmo sonhara em princípio. Mas a coisa já estava feita e não tinha mais como o monge revoltado voltar atrás, exceto construindo um protestantismo com fortes bases católicas, como foi mesmo o que veio a acontecer, descontentando outros reformadores, como Calvino, Melanchton e Zwinglio.

Analisando com cuidado as implicações das máximas que permearam o nascimento do protestantismo, percebemos que o catolicismo medieval ainda é forte nas nossas relações de evangélicos. Embora seja uma tese para gerar debates até acalorados, ninguém pode negar que somos mais dependentes da hierarquia sacerdotal do que nunca. Afinal, até na hora de exercermos nossa cidadania delegamos nossas decisões democráticas aos líderes - muitas vezes mal intencionados - de nossas comunidades de fé. 

A postura do pastor Silas Malafaia, tentando colocar "cabresto" no voto de milhares de evangélicos assembleianos - e conseguindo inicialmente até algum sucesso - é uma prova cabal disso. A postura de milhares - quiçá milhões - de evangélicos que sacralizam a voz do pastor como se fosse a própria voz de Deus, mesmo quando o pastor fala uma série de besteiras refutadas pela Teologia, pela Exegese, pela História e pela Arqueologia, é outra prova dessa permanência nas "trevas" do catolicismo retrógrado medieval.

Mas ser protestante é outra coisa; é saber que é a fé em Deus - e não a fé nas correntes intermináveis das igrejas evangélicas - que tem o poder de derramar a graça que redime. É saber que é a graça deste mesmo Deus, entregando Jesus para todos - e não as falsas promessas pastorais, que só são compreendidas numa confissão positiva adoecida - que realmente salva o ser humano. É saber que é Bíblia - e não a leitura interesseira que muitos líderes fazem dela - que realmente alimenta e edifica os indivíduos, assemelhando-os ao Cristo que a todos recebe sem distinção. É saber que sou eu - e não um pastor aproveitador qualquer - que tenho o poder de ser sacerdote de mim mesmo diante de Deus. Isso é que é, stricto sensu, o protestantismo.

Era isso que Martinho Lutero queria em princípio e que devemos querer agora. Afinal, a Bíblia é protesto e profecia, enquanto denúncia social, pura. Sem entendermos isso, não nos restará nada além de, no domingo próximo, comemorarmos mais uma eleição, convidando o vizinho evangélico para uma festa de halloween.

liberdade, beleza e Graça...

8 comentários:

  1. "Mas ser protestante é saber que é a fé em Deus que tem o poder de derramar a graça que redime. É saber que é a graça deste mesmo Deus que realmente salva o ser humano.É saber que é Bíblia que realmente alimenta e edifica os indivíduos, assemelhando-os ao Cristo que a todos recebe sem distinção.É saber que sou eu que tenho o poder de ser sacerdote de mim mesmo diante de Deus. Isso é que é, stricto sensu, o protestantismo."
    Acho que por não entendermos o nosso sacerdócio, não entendemos mais nada.
    Demais o texto.

    ResponderExcluir
  2. Ou por não entendermos as Escrituras...

    ResponderExcluir
  3. Pô, liana, assim eu vou me tornar seu fã, caramba!! rsrsrsrs
    beijos, amiga.

    liberdade, beleza e Graça...

    ResponderExcluir
  4. Gostei desse texto e peço licença para fazer um paralelo quimiquesco ...
    Uma das teorias da Química diz que as entidades eletricamente carregadas, os íons, buscam atingir o equilíbrio ganhando ou perdendo carga elétrica(usamos "entidade" não com o sentido metafísico que existe no meio religoso, mas como um substantivo para generalizar algumas estruturas). Esse movimento de busca enlouquecida dá origem às ligações e reações químicas que resultam nas estruturas físicas que vemos e também em muitas que não vemos, mas que existem pois podemos medir seus efeitos.
    Se esse conceito fosse aplicado ao protestantismo atual, eu poderia dizer que a reforma protestante foi uma reação que gerou produtos quimicamente diferentes. Um é estável e inerte, ou seja, atingiu o equilíbrio e parou de reagir. Existe um outro que é chamado de produto de degradação e que basicamente é o lixo da reação. E existe mais um outro, que é chamado de "radical livre", ou seja, é aquele que ainda não está equilibrado e que irá fomentar outras inúmeras reações que poderão produzir os mais diversos produtos.
    Vivi o catolismo, experimentei um pouco do espiritismo, passei por algumas igrejas cristãs não católicas e permaneci em uma delas. Conheci o evangelho no modelo das igrejas chamadas históricas e convivi com uma mistura pentecostal-judaico-evangélica.Dessas minhas experiências,concluí que é muito mais cômodo e confortável ser o produto estável que pode ser manipulado livremente ou o produto de degradação que já está caracterizado como inútil. Difícil é ser o "radical livre" que irá continur a reagir, muitas vezes de formas inesperadas.
    Ser "sacerdote de mim mesmo diante de Deus" é assumir o papel de "radical livre" e permitir-me mudar e ser agente de mudança em função das novas demandas ao invés de ser uma entidade inerte ou uma entidade inútil.
    Feliz Reforma para todos nós!

    ResponderExcluir
  5. Querida Fabi.
    Confesso que o teu texto me foi uma aula sensacional!! Fiquei mesmo maravilhado com a tua leitura e desejo muito que outros a acessem. Um beijo carinhoso.

    liberdade, beleza e Graça...

    ResponderExcluir
  6. protestantes "desacostumados" com a liberdade. Isso se manifesta no fato de lutarem para que o aborto não seja liberado, nem o homosexualismo, e por ai vai. Enquanto não entermos que a transformação se faz na mente e não com imposições, continuaremos sempre esquecendo que somos livres, e que os outros também tem esse direito, mesmo que não concordemos. Se fato fossemos bons o suficiente, olhariam para nós e perceberiam que estão errados, ou talvez nâo.... rs....

    ResponderExcluir
  7. Sabe a melhor parte dos teus textos? a parte final. Sempre me dá vontade de rir pela genialidade... ou chorar pela realidade dos fatos.

    Abraços,

    www.nelsonlellis.blogspot.com

    ResponderExcluir
  8. Muito bom o texto... o paralelo com o Malafaia nos mostra bem que muita coisa que parece ter mudado, na verdade não mudou... ou melhor, a "briga" de Lutero só tirou de alguns para outros que fazem o mesmo...

    E concordo com o o outro comentário.. o final é excelente.. :-)

    ResponderExcluir