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Graduado em Artes Cênicas, Teologia e Ciências Sociais. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF, Doutor em Sociologia pela UERJ e Pós-doutor em Sociologia Política pela UENF. Pesquisador de Relações Raciais, Sociologia da Religião e Teoria Sociológica. Professor do Instituto Federal de São Paulo.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

"O aniquilacionismo: teoria para um Javé menos irado"

Dentre os vários assuntos propostos pela Teologia Sistemática, o juízo final e suas consequências talvez seja o tema mais árido e espinhoso. Isso porque parece que é sempre muito difícil explicar a possível articulação entre o Javé do Antigo Testamento e o Jesus do Novo. Para uma gama considerável de teólogos, tal articulação é até impossível, uma vez que, à luz da leitura da "personalidade" de tais elementos, fica mesmo muito difícil não atrelar ira ao primeiro e amor incondicional ao segundo.  

A leitura assim posta é apressada, claro, pois ao atentarmos bem para algumas posturas e falas de Jesus de Nazaré, encontraremos resquícios de uma "genética que não nega a si mesma". Embora tenhamos construído um cânon dentro do cânon, a fim de ensinarmos apenas parte do que a Bíblia diz - e do jeito que a gente acha que ela realmente diz -, tal coletânea de livros nos apresenta um Jesus por várias vezes bem diferente do que querem as nossas leituras cerceadas. De resposta duríssima a uma mulher desesperada, por conta da possessão da filha - e à própria mãe, no episódio das bodas em Caná da Galileia! - a frases como: "Não vim trazer a paz, mas a espada"; "Não vim unir, mas separar pais e filhos, irmãos e irmãs", além do ato bastante irado de chicotear camelôs no templo, Jesus mostra aspectos de uma personalidade bem pouco explorada pelos nossos púlpitos. Talvez sejam estes os aspectos a justificarem uma concordância dele com a proposta "javista" de juízo, algo que, se bem analisado por nós, faz com que, no sentido que estamos aqui buscando elucidar, os dois sejam realmente um.

Entrando, então, no cerne do assunto que justifica o presente texto, falar de Javé é também falar de um Deus que preparou - desde antes da fundação do mundo, segundo relatos bíblicos - um dia de duríssimo juízo. Neste dia, conforme tais relatos, Jesus estará em pé, como justo juiz, tendo consigo o poder de, na presença de Javé, julgar todos os seres humanos de todas as épocas, lançando uma pequena parte num paraíso e uma imensa maioria num lugar que, para que a imagem seja bem fixada em nossas mentes, chama-se lago de fogo e enxofre. Lançadas neste lago, as pessoas que não tiveram seus nomes encontrados num livro de Deus - chamado de Livro da Vida - por não terem aceitado as propostas de Javé, na recepção a Jesus Cristo, serão perturbadas eternamente, sendo que o fogo infernal de tal lugar tem poder para queimar, mas não para consumir, uma vez que o intuito é que a danação não tenha mesmo um fim.

Discordando, porém, que Jesus e Javé tenham a mesma "carga genética irada", os teóricos do chamado aniquilacionismo se mostram descrentes em relação a tal postura de juízo e propõem alguns argumentos que buscam afastar Jesus de Javé - mas com outra possibilidade de leitura - mostrando aquele como realmente bom e este como irado, mas apenas enquanto "justificador de uma época bélica veterotestamentária". Como as épocas mudam, todavia, e tendo a postura amorosa de Jesus ganhado o mundo, convencendo-o quase que completamente acerca de uma ética cristã, já não caberia mais uma proposta de juízo tão radical, ficando o texto bíblico como uma alegoria, uma metáfora do que realmente seriam o céu e o inferno, haja vista o contexto histórico no qual o texto de Apocalipse foi produzido.

O aniquilacionismo defende, então, que haverá aniquilação dos indivíduos maus e de todos aqueles que não aceitaram a proposta divina de reconhecer Jesus como o Dei Verbum, a Palavra de Deus. Assim, tais pessoas serão totalmente destruídas, ficando eternamente aniquilado o mal. Mostrando, deste modo, uma "bondade divina", atrelada à incoerência de uma forma de castigo que refuta tal bondade, tal processo de aniquilação seria muito menos cruel, pois seria mais justo do que condenar à eternidade de danação alguém que pecou apenas por alguns anos, já que a vida na terra é curta demais. A frase que aqui poderia ser usada como ilustração é: "se pequei por 80 anos de vida, por que tenho de pagar eternamente?". Outro argumento aniquilacionista é o que entende que a presença eterna de criaturas más no universo prejudicaria a perfeição de um espaço criado para refletir a glória de Deus.

A proposta aniquilacionista, é importante lembrar, encontra justificativa até em alguns clássicos textos bíblicos. No entanto, tal proposta esbarra no mais duro adversário: assim como o universalismo - que apregoa amor divino incondicional e salvífico para todos os seres de todas as épocas, já que a manifestação plena do amor de Deus destrói todo o mal e convence convertendo a todos -, a proposta aniquilacionista não satisfaz à maioria dos religiosos, já que, para estes, muito mais interessante do que gozar a presença eterna de Deus no céu, é saber que poderão dizer "bem feito!" para a imensa maioria das criaturas perdidas neste mundo, às quais Deus tanto ama.

liberdade, beleza e Graça...



6 comentários:

Peroratio disse...

Meu amigo Cleinton - julgar os mitos do universalismo e do aniquilacionismo é coisa fácil e difícil. Fácil - mito. Difícil, como determinar qual dos dois é mais "lógico" ou condizente com a ideia de Deus - mas, que ideia de Deus?, já que Deus, nesses termos, não passa de doutrina? Qual seria a sua "preferência"? Salvação para todos ou aniquilação dos maus - porque eu me recuso a crer que te enamoras do mito do inferno e de um Deus e seus filhos felizes, enquanto bilhões ardem nas chamas... Mito por mito, qual embalas?

Cleinton disse...

A resposta, meu amigo Osvaldo, você já a tem. Se você se recusa a crer em algo sobre mim, é porque sabe bem que mito eu escolho. Você foi meu professor e sabe muito bem que tipo de Teologia você ajudou a fomentar em mim. Deste modo, respondo que escolho o mito que você sabe que eu escolho. E sei bem que você não tem dúvidas quanto à minha resposta. Obrigado por ler e comentar. Há braços...

Liana disse...

Interessante. Não conhecia o termo aniquilacionismo, só a ideia. Interessante pensar também no sentimento de "bem-feito" que foi o meu durante alguns anos da vida cristã, quando confundia amor e justiça (mas, para mim, maldade). Hoje, ainda não sei explicar muito bem esta relação, mas tento expressar o amor e deixar a justiça para aquele que sabe julgar.
Muito bom ler seus textos, Cleinton. Graaaaaande abraço!

NELSON LELLIS disse...

A ideia de reconstruções da imagem de Deus é tarefa árdua e constante para a teologia. A modernidade teve de virar a página enquanto a igreja apresentava-o como a um juiz impiedoso. Creio que o texto não se refere tão somente ao assunto escatológico-apocalíptico, mas ao discurso de quem pode ser Deus na interpretação da história e o do saber dialogar com as mais diferentes correntes. Portanto, aos leitores da página, deixo como dica a leitura do livro "Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus", do teólogo católico Andrés Torres Queiruga.

Aquele abraço,
Lellis

Peroratio disse...

Lellis, "a reconstrução da ideia de Deus" é apenas a substituição de uma imagem por outra. Julgaremos a última mais adequada do que a anterior, mas, no frigir dos ovos, é ela fruto de nossa ética e moral. Não se trata mais de "Deus" desde que Judá aceitos a moral persa e pôs em "Deus" um cabresto moral. Agora, nosso "Deus" é a moral e a ética - nada mais do que isso... Era-o antes, também: mas eles não sabiam...

NELSON LELLIS disse...

Certo, Osvaldo. A ideia do pressuposto é contínua. A leitura de Deus (por um) hoje é a leitura feita de Deus (por outro) ontem. Sua sacada de Judá é de antes de ontem. Isso dá uma segurança melhor? Você mesmo respondeu.
Uma quimera: será que a Bíblia perderia para nossa Constituição? Poderiam (Bíblia e Constituição) lutar pela tutela de Deus a fim de balizar o mundo com uma ética ao menos nacional(ista)? Daí, poderemos algum dia dizer "Deus é brasileiro para os brasileiros"; "americano para os americanos"; "alemão para os alemães"...?
Bem... acho que a humanidade erraria menos se interpretasse Deus pela nossa Constituição.

Respeitosamente,
Lellis