O texto bíblico do
Evangelho segundo São Lucas apresenta no capítulo 8 (entre os versos 40 e 56) dois
eventos de cura que curiosamente se sobrepõem. Como a Bíblia é fruto de uma
edição que por vezes se equivoca, pode ser que originalmente os dois eventos
não tenham ocorrido ao mesmo tempo. Todavia, parece bem plausível que o
equívoco não tenha ocorrido ali e que tenha mesmo havido uma simultaneidade nas
curas narradas, pois não há bruscas rupturas nas ações citadas pelo
evangelista.
A passagem bíblica
narra a aflição de Jairo, chefe de uma sinagoga judaica, por conta da grave doença
de sua pequena filha, que estava já à beira da morte. Enquanto desce para a
casa de tal importante homem, Jesus, apertado
pela multidão, é tocado por uma
mulher, anônima, com fluxo hemorrágico grave, o que também a colocava à beira
da morte.
A sistematização que
faz a Bíblia apresentar alguns números quase que de forma cabalística nos
coloca nesta passagem diante do número 12, numeração que aproxima de forma
curiosa a filha de Jairo e a mulher da hemorragia. O número 12, como é sabido,
expressa uma totalidade para a tradição judaico-cristã, totalidade essa que
remete às 12 tribos de Israel, nos levando também aos 12 discípulos, já que
Jesus era judeu e não deixaria de cumprir
a regra.
Numa análise
comparativa, temos no texto uma série de possibilidades para se justificar a exemplaridade
dos eventos bíblicos aqui estudados, pois é preciso estar atento para o fato de
ser um homem, chefe de sinagoga, e que tinha tudo para gastar, em contraposição a uma mulher, que nem marido tinha para acompanhá-la, e que já não tinha recurso
algum, pois havia gastado tudo com médicos, sendo que sem qualquer sucesso. Ao mesmo
tempo, trata-se de Jairo, homem de quem todos queriam aproximação, e de uma
mulher, sangrando e morrendo, com a qual ninguém queria (e nem podia, pois a
mulher sangrava, o que a tornava impura) qualquer contato. O mais importante; trata-se de um homem que tinha uma filha morrendo com apenas 12 anos de vida,
contrapondo-se a uma mulher vivendo já
com 12 anos de morte. Um homem,
chefe, rico, cercado de gente e com os apenas 12 anos da moribunda filha lhe martelando
a cabeça e lhe tirando a paz. Uma mulher, anônima, pobre e sozinha, com 12 anos
lhe tirando as últimas esperanças de viver, mas ao mesmo tempo a lançando à
guerra. Jairo buscava a paz na cura da filha, a mulher buscava a cura na guerra
contra uma estrutura social imposta, pois precisaria vencer as barreiras de uma
sociedade machista, religiosa e autoritária para poder tocar Jesus como nenhuma
outra pessoa poderia tocar.
Jesus responde às duas: à filha
de Jairo - ressuscitando-a, pois quando ele chegou em sua casa a menina já estava morta - e à mulher do fluxo de sangue, secando-lhe a hemorragia. Mas a maneira de fazê-lo, como quase sempre
acontece nas posturas daquele nazareno, não é a mesma. Ainda que a totalidade
e a exemplaridade dos 12 anos acompanhassem a ambos, o caminho de Jairo é o que
chamo de caminho da religião, onde,
seguindo todas as regras protocolares, o foco está no que Deus pode fazer, a
independer do que eu faça. O caminho da mulher é o caminho da espiritualidade, quebrando quaisquer protocolos, e onde
o foco está no que eu posso fazer com meu ato espiritualmente revolucionário, a independer do que Deus e o sistema façam.
Por misericórdia e
graça, Jesus recebe e responde a homens, religiosos, ricos e afamados, mas
nunca deixa de olhar de forma singular para quem o toca de forma única, fora dos padrões protocolares e mediadores da religião
imposta, ainda que o toque venha de alguém pobre, sozinho, desprezado e, para
chocar ainda mais a tudo e a todos, de uma mulher.
liberdade, beleza e
Graça...
Cleinton, parabéns pelo texto.
ResponderExcluirGosto muito quando você aborda este tema, porque sempre o faz de maneira profunda, deixando-me pensativo por muito tempo após ter lido.
Um forte abraço!
Quando diz que o texto sugere muitas possibilidades, tento fugir dele e imaginar Jairo conduzindo sua filha para a ciência da época e encontrando a cura; a mulher, cuja Bíblia ainda lhe "nega" a identidade, se refugiando na sinagoga de Jairo e sendo curada por sua fé. São apenas possibilidades. Escondidas não no texto, mas vagas.
ResponderExcluirImagino ainda, amigo Cleinton, uma vida menos dorida se a religião tivesse mais fé na ciência e menos fé na fé, bem como uma busca maior por esta espiritualidade que, com tanta delicadeza, resgatou através desse belo texto.
No entanto, ainda é fato e fator determinante para cristãos e cristãs, que Jesus é ponto de encontro dentro e fora dos portões da ciência.
Beijo grande,
Lellis
Nelsinho, e se a ciência tivesse menos fé na ciência e mais fé na fé? O caminho deve ser de mão dupla, não acha? Tento sempre fazer a mão dupla, uma vez que sou cientista social, mas também teólogo e pastor. E, quando nenhum destes elementos responde, lembro que sou também artista e a arte sempre me aponta uma resposta! Há braços...
ResponderExcluirSim, concordo. Acho que a ideia é tentar fugir dos extremos. "Algumas" soluções estão aí, precisamos cavar fundo para encontrá-la. Mas como diz o Pr. Kivitz, "pensar dói".
ResponderExcluirConcordo com o Paulo Rodrigues, gosto muito quando você abordar os temas pq você faz a contextualização de uma forma que EU considero única!
ResponderExcluirGostei muito do texto. Muito obrigado :)