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Graduado em Artes Cênicas, Teologia e Ciências Sociais. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF, Doutor em Sociologia pela UERJ e Pós-doutor em Sociologia Política pela UENF. Pesquisador de Relações Raciais, Sociologia da Religião e Teoria Sociológica. Professor do Instituto Federal de São Paulo.

terça-feira, 19 de junho de 2012

"Caminhos da espiritualidade"


O texto bíblico do Evangelho segundo São Lucas apresenta no capítulo 8 (entre os versos 40 e 56) dois eventos de cura que curiosamente se sobrepõem. Como a Bíblia é fruto de uma edição que por vezes se equivoca, pode ser que originalmente os dois eventos não tenham ocorrido ao mesmo tempo. Todavia, parece bem plausível que o equívoco não tenha ocorrido ali e que tenha mesmo havido uma simultaneidade nas curas narradas, pois não há bruscas rupturas nas ações citadas pelo evangelista.

A passagem bíblica narra a aflição de Jairo, chefe de uma sinagoga judaica, por conta da grave doença de sua pequena filha, que estava já à beira da morte. Enquanto desce para a casa de tal importante homem, Jesus, apertado pela multidão, é tocado por uma mulher, anônima, com fluxo hemorrágico grave, o que também a colocava à beira da morte.

A sistematização que faz a Bíblia apresentar alguns números quase que de forma cabalística nos coloca nesta passagem diante do número 12, numeração que aproxima de forma curiosa a filha de Jairo e a mulher da hemorragia. O número 12, como é sabido, expressa uma totalidade para a tradição judaico-cristã, totalidade essa que remete às 12 tribos de Israel, nos levando também aos 12 discípulos, já que Jesus era judeu e não deixaria de cumprir a regra.

Numa análise comparativa, temos no texto uma série de possibilidades para se justificar a exemplaridade dos eventos bíblicos aqui estudados, pois é preciso estar atento para o fato de ser um homem, chefe de sinagoga, e que tinha tudo para gastar, em contraposição a uma mulher, que nem marido tinha para acompanhá-la, e que já não tinha recurso algum, pois havia gastado tudo com médicos, sendo que sem qualquer sucesso. Ao mesmo tempo, trata-se de Jairo, homem de quem todos queriam aproximação, e de uma mulher, sangrando e morrendo, com a qual ninguém queria (e nem podia, pois a mulher sangrava, o que a tornava impura) qualquer contato. O mais importante; trata-se de um homem que tinha uma filha morrendo com apenas 12 anos de vida, contrapondo-se a uma mulher vivendo já com 12 anos de morte. Um homem, chefe, rico, cercado de gente e com os apenas 12 anos da moribunda filha lhe martelando a cabeça e lhe tirando a paz. Uma mulher, anônima, pobre e sozinha, com 12 anos lhe tirando as últimas esperanças de viver, mas ao mesmo tempo a lançando à guerra. Jairo buscava a paz na cura da filha, a mulher buscava a cura na guerra contra uma estrutura social imposta, pois precisaria vencer as barreiras de uma sociedade machista, religiosa e autoritária para poder tocar Jesus como nenhuma outra pessoa poderia tocar.

Jesus responde às duas: à filha de Jairo - ressuscitando-a, pois quando ele chegou em sua casa a menina já estava morta - e à mulher do fluxo de sangue, secando-lhe a hemorragia. Mas a maneira de fazê-lo, como quase sempre acontece nas posturas daquele nazareno, não é a mesma. Ainda que a totalidade e a exemplaridade dos 12 anos acompanhassem a ambos, o caminho de Jairo é o que chamo de caminho da religião, onde, seguindo todas as regras protocolares, o foco está no que Deus pode fazer, a independer do que eu faça. O caminho da mulher é o caminho da espiritualidade, quebrando quaisquer protocolos, e onde o foco está no que eu posso fazer com meu ato espiritualmente revolucionário, a independer do que Deus e o sistema façam.

Por misericórdia e graça, Jesus recebe e responde a homens, religiosos, ricos e afamados, mas nunca deixa de olhar de forma singular para quem o toca de forma única, fora dos padrões protocolares e mediadores da religião imposta, ainda que o toque venha de alguém pobre, sozinho, desprezado e, para chocar ainda mais a tudo e a todos, de uma mulher.

liberdade, beleza e Graça...

sábado, 2 de junho de 2012

"Mas, afinal, o que é o neoliberalismo?"


A temática que este ensaio pretende abordar diz respeito a um movimento de viés tanto político quanto econômico que, mesmo não sendo sequer percebido pela maioria da população, conseguiu infiltrar-se nos mais variados setores das sociedades ocidentais contemporâneas; o neoliberalismo
Embora para muitos essa corrente seja citada como algo etéreo e que simplesmente “já está dado”, o neoliberalismo tem um início bem marcado e demarcado na história da humanidade. Segundo Perry Anderson, o neoliberalismo foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar. Seu texto de origem é “O caminho da Servidão”, de Friedrich Hayek, escrito já em 1944
Por mais incrível que possa parecer, a teoria que entende que a “desigualdade é positiva”, foi corroborada por intelectuais de renome como Milton Friedman, Karl Popper, Walter Lipman, Michael Polanyi e outros, que formaram a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, contrária ao keynesianismo e ao solidarismo reinantes na época do pós-guerra.
Para Hayek e seus amigos, o Estado de bem-estar social e qualquer outro tipo de igualitarismo destruíam a liberdade e o espírito de concorrência, dos quais dependia a prosperidade de todos. Para eles, os danos das sucessivas crises econômicas, a de 1973 em especial, poderiam ser creditados à força dos sindicatos e dos movimentos operários, que tinham, com sua enorme força e poder de cooptação, impedido o acúmulo de riquezas, que é a base do capitalismo. Por conta disso, romper o poder dos sindicatos e buscar a estabilidade monetária como meta principal era a tese primeira dos neoliberais.
            A partir de 1979, segundo Anderson, a ideia neoliberal toma conta de boa parte do ocidente; na Inglaterra, foi eleito o governo de Margareth Thatcher; nos Estados Unidos, o de Ronald Regan; na Alemanha, o de Helmut Khol; na Dinamarca, o governo de Schluter. Todos eles, um a um, contribuindo para uma onda direitista no mundo contemporâneo, ratificando as teses de Friedrich Hayek e da Sociedade de Mont Pèlerin.
            O ideário neoliberal, contrapondo qualquer manifestação socialista/comunista ou de solidarização, tomou conta dos principais países do Ocidente, implementando políticas como a das privatizações de estatais, a redução de impostos em favor dos mais ricos, a elevação das taxas de juros, para benefícios dos especuladores, e a supressão pela força de quaisquer movimentos grevistas. A contrapartida veio de países do sul da Europa, onde uma tentativa de resistência de euro-socialistas parecia ter alguma força. Mitterrand, na França; González, na Espanha; Soares, em Portugal; Craxi, na Itália e Papandreou, na Grécia, foram algumas tentativas de barrar a onda neoliberal. Com o tempo, porém, verificou-se que os países resistentes tinham sucumbido à tentação neoliberal, inclusive adotando posturas ainda mais à direita do que o primeiro grupo. Ao final dos anos 1980, apenas Áustria, Suécia e o Japão - este último fora do velho continente - ainda conseguiam resistir à onda que tomava a todos com força e argumentos, mesmo perniciosos, num movimento que conseguiu derrotar o sindicalismo e se estabelecer, controlando greves e diminuindo salários, já a partir dos anos 1980.
            Saber se houve êxito na busca neoliberal é uma das proposições que hoje, à luz da grave crise econômica e social europeia, nos colocamos. Para tanto, é preciso notar que de fato os neoliberais conseguiram se estabelecer com bastante imponência, visto que conseguiram diminuir a tributação dos salários mais altos em 20%, conseguiram fazer com que os valores das bolsas crescessem quatro vezes mais do que os dos salários e, com deflação, lucros exorbitantes e salários baixos, tal corrente conseguiu mesmo se posicionar com “destaque” no mundo contemporâneo. Todavia, a principal busca do neoliberalismo, que era alcançar a reanimação do capitalismo avançado mundial, com taxas de crescimento consideráveis, não aconteceu. Não houve crescimento, apesar de todo o movimento que se colocava.
            Com a convicção de que não se cresceu e que o foco dado não na produção, mas na especulação estava errado, os neoliberais precisavam dar uma resposta ao esgotamento do sistema de ideias suas. Enquanto muitos, nos finais dos anos 1980, já esperavam o último suspiro das ideias de Hayek, eis que a União Soviética sucumbe, dando ao neoliberalismo um novo fôlego de vida. A outra opção, pois, parecia se mostrar ainda mais derrotada. Por conta disso, bastava que outros verdadeiros “culpados” pelo fracasso neoliberal fossem encontrados. Os bilhões de dólares gastos pelos Estados em pensões e aposentadorias passaram a ser um “bom culpado”. O desmonte de vários sistemas estatais de seguridade começou, então, a se ensejar, dando ao neoliberalismo a sua faceta mais cruel e violenta.
            A América Latina respondeu à onda neoliberal de forma bastante curiosa; não refutando-a, mas, ao contrário, corroborando-a. O Chile de Pinochet, na verdade, até foi neoliberal antes da Inglaterra de Thatcher, como defende Perry Anderson. A Bolívia, por seu turno, também foi território para que a doutrina neoliberal, ali aplicada por Jeffrey Sachs, fosse aperfeiçoada e mais tarde aplicada com sucesso na Polônia e na Rússia. Curiosamente, a Venezuela foi o país que conseguiu escapar à onda, visto ser ela a democracia mais contínua e sólida da América do Sul, tendo conseguido inclusive escapar dos desmandos das ditaduras militares que ocuparam a América Latina, conforme palavras de Perry Anderson.
            Diferentemente do que queriam os analistas e teóricos na época do governo de José Sarney, não é a torcida do contra (aquela que apregoava uma hiperinflação para “ensinar o povo” que a saída neoliberal era a única possível), mas a atenção aos fatos que não precisam de falsos argumentos o que poderá ser uma saída possível. Prova disso é que a região do capitalismo que mais apresentou êxitos nos últimos anos foi a menos neoliberal; Japão, Coréia, Formosa, Cingapura e Malásia.
            Embora o neoliberalismo tenha alcançado êxitos não imaginados nem por muitos de seus próprios fundadores, os países acima citados, e suas experiências à margem das ideias de Hayek, podem ser uma boa fonte de respostas para aqueles que se pretendem opositores da Sociedade de Mont Pèlerin, bem como para que repostas urgentes cheguem à Grécia, Espanha, Portugal e outros que estão à beira da falência. O Brasil, por incrível que pareça, retomou uma ideia keynesiana e, com investimentos em infraestrutura, acabou se dando ao luxo de chamar a onda da crise de "marolinha". A França de Hollande, diferentemente da de Sarkozy, parece querer seguir a rota tupiniquim em busca de ondas menos assustadoras. Agora é esperar para ver um novo fôlego que o capitalismo globalizado poderá oferecer, ou, o que seria bem melhor, ouvi-lo, pela boca da senhora Ângela Merkel, chanceler alemã, um sonoro e muito bem vindo PERDEMOS!

liberdade, beleza e Graça...