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Graduado em Artes Cênicas, Teologia e Ciências Sociais. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF, Doutor em Sociologia pela UERJ e Pós-doutor em Sociologia Política pela UENF. Pesquisador de Relações Raciais, Sociologia da Religião e Teoria Sociológica. Professor do Instituto Federal de São Paulo.

segunda-feira, 27 de março de 2023

"O filho, um dia, à casa torna"

Com a morte do meu pai, tendo eu apenas 2 anos de idade, fui levado a um orfanato em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, tendo minha mãe virado as costas e deixado os três filhos com "amigos novos e em um lugar bonito". Foram 12 anos de orfanato. Anos de tortura e de muita violência e injustiça, mas ainda sem o Estatuto da Criança e do Adolescente, que à época nos protegeria muito, caso já existisse.

Aos 12 anos de orfanato se juntaram um com minha avó materna, alguns meses em pensão, dividindo quarto com mais 7 e vendo minhas roupas sumirem e aparecerem suadas, e algum tempo morando de favor ou em um quartinho alugado, antes de alguma dignidade aparecer. Como o mais digno foi uma casinha de 2 cômodos e com banheiro externo, a ida para um grande centro se tornou condição fundante de existência. Fui para o Rio de Janeiro. 

Formação em Artes Cênicas e vida dura, sem dinheiro algum. Formação em Teologia e vida dura, sem dinheiro algum. Formação em Ciências Sociais e a coisa começou a clarear, mas só após o mestrado. Até isso, vida dura, sem dinheiro algum. Mas pelo menos já não era mais a história de dividir um pacote de biscoito para almoçar a metade e jantar a outra parte. Com o mestrado vieram a bolsa e as aulas, o que já me fez sentir cidadania correndo na veia. Ganhar 1200 reais "só para estudar", e estando em uma universidade federal era para mim a primeira experiência como cidadão; comecei a sentir que o país fazia algo por mim. No doutorado, apesar de uma bolsa ainda maior, eu já não sentia que era um favor do Estado, mas uma obrigação mínima. Não teve, pois, a emoção da primeira bolsa, a mais barata. 

Ao final do doutorado, a aprovação em concurso público federal. Acabou a vida dura, a falta de dinheiro algum. A dignidade enfim veio e trouxe consigo o que todo brasileiro deveria conseguir: sair da vida dura, a sem dinheiro algum. Anos e anos de Rio de Janeiro, anos de Espírito Santo e, após um pós-doutoramento que eu nem esperava, eis que surge uma oportunidade de voltar à terra do orfanato, a minha terra. Aqui tudo se mostra reconhecível, apesar de tantos bairros novos, pontes e avenidas largas. Rio Preto não é mais a mesma, mas não mudou nada. Entende o paradoxo? Um lugar totalmente mudado, mas o mesmo sentimento de pertença. A mesma possibilidade de se falar "é o meu lugar". 

Não sei ao certo se serei mais útil trabalhando as Artes Cênicas, a Teologia ou as Ciências Sociais. Mas agora é gastar nesse Rio o que o outro Rio me deu. Vivo, sou algo, entre dois Rios; o de Janeiro e o Preto. Tentei andar no Espírito, o Santo, mas não fui crente o suficiente. Não tenho mais o mar e nem a queima de fogos em Copacabana, mas tem o sotaque que outrora tive, tem um contingente de ao menos 100 irmãos de orfanato, tem família de sangue, tem a represa, o Teatro Nelson Castro, o Humberto Sinibaldi e o Paulo Moura. Tem o Bar do André, o do Roberto. Tem a igreja onde me converti e a professora que me salvou. Enfim, estou em casa; eu sou daqui. 

liberdade, beleza e Graça...