Gandhi afirmou certa vez que "se todos os livros do mundo se perdessem, mas restasse o Sermão da Montanha, a humanidade estaria salva". O líder indiano, que, mesmo sendo de tradição religiosa hinduísta, não via problemas em utilizar bons conselhos de textos de outras religiões, fazia referência a um discurso atribuído a Jesus de Nazaré, alocado nos capítulos 5, 6 e 7 do Evangelho de São Mateus, no livro sagrado dos cristãos, a Bíblia.
Dentre todos os ditos de Jesus em tal discurso na montanha, o que atribui aos ouvintes a denominação de "sal da terra" e "luz do mundo" é um dos mais interessantes, uma vez que não é lido como deveria, mas "cristianizado", mesmo sem Jesus querer. A leitura evangélica, construída à luz da tradição cristã, edificada sobre o arcabouço teórico e religioso do Apóstolo São Paulo, é extremamente falha na apreensão do valor de tais palavras.
O anacronismo no processo de leitura faz com que os crentes pensem que o "sal da terra" - para dar um gosto especial ao mundo e ao mesmo tempo não o permitir apodrecer - e a "luz do mundo" - para iluminar os caminhos dos que andam na escuridão da vida, sem ver a luz que os possa esperançar - se referem aos que creem em Deus, nas palavras ditas divinas ou na religião cristã, responsável direta por privatizar tais conselhos para si.
Sendo, todavia, o discurso proferido para toda sorte de pessoas e etnias, que se amontoavam para ter uma palavra de Jesus em suas vidas, não é tal conjunto de palavras sinal de que os crentes são os responsáveis pela transformação benéfica do mundo que nos cerca, mas de que são apenas parte de um processo onde se encontram - em se tratando de uma aplicação atualizada do texto - católicos, espíritas, candomblecistas, pretos, amarelos, índios, pobres, ricos, mulheres, brancos, ateus etc.
Por mais que a leitura paulinista - feita na intenção de construir uma religião cheia de idiossincrasias e sectarismos - seja tida como um incentivo para que os crentes vivam justa e piedosamente neste mundo vil, a pregação de Jesus - que só serviria para fomentar uma espiritualidade inclusivista, já que só se interessava por apresentar o Reino de Deus - é uma porta aberta para que todos, sem distinção, se responsabilizem pela busca e cuidado com o outro, sobretudo quando este outro é considerado tão outro que não merece qualquer menção, isto é, quando se trata do meu próximo propositalmente distanciado.
Jesus não falava apenas para os que criam nele; ele falava para todos aqueles que se poderiam indignar contra o pecado, sobretudo o pecado social, tão esquecido naquela época e também nos dias atuais. Porque quando a fome alheia não me toca e não me faz colocar a mão no bolso, eu peco; quando uma mulher apanha e eu não choro, envergonhado por ser homem, eu peco; quando uma pessoa é ofendida ou preterida por conta da cor de sua pele e isso não mexe com minhas entranhas, que penso caucasianas, eu peco. Se, à medida que o "evangelho" se espalha, a violência de todos os tipos cresce na mesma proporção, é sinal de que estamos pecando muito, ainda que nos entendamos "sal da terra" e "luz do mundo". Neste caso, a questão é que pecamos e achamos que não, uma vez que não bebemos, não fumamos e não transamos.
liberdade, beleza e Graça...