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Graduado em Artes Cênicas, Teologia e Ciências Sociais. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF, Doutor em Sociologia pela UERJ e Pós-doutor em Sociologia Política pela UENF. Pesquisador de Relações Raciais, Sociologia da Religião e Teoria Sociológica. Professor do Instituto Federal de São Paulo.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

"Enfim, o povo está de novo nas ruas!"

Com o enfraquecimento dos movimentos sociais, por conta de uma sagaz retórica reacionária que prega que "não adianta nada protestar, pois nada vai mudar", dificilmente se imaginaria uma tomada de posição como a que acontece há alguns dias no país. O povo, enfim, tomou as ruas e passou a exigir uma atenção que só estava sendo dada a algumas obras "para inglês ver", obras essas para a copa do mundo de futebol que se aproxima e que será aqui mesmo no Brasil.

O movimento que hoje sacode o país começou por conta de um aumento considerado abusivo para o transporte público na cidade de São Paulo, a mais próspera da nação. Dos vinte centavos que provocaram a indignação do Movimento Passe Livre, no entanto, pouco resta hoje, visto que são vários os grupos pleiteando direitos, o que só fez universalizar o levante social que agora toma as ruas e as mais variadas mídias, sobretudo as eletrônicas.

Faltando exato um ano para as eleições, um movimento dessa magnitude não poderá ser ignorado, haja vista o fato de que é um levante popular que pode ser computado para o mal ou para o bem, a depender da sagacidade da classe política. Pelo início das respostas da polícia militar paulista, o saldo se fez bastante negativo, o que fez com que o governador Geraldo Alckmin repensasse a truculência por ele incitada na semana passada, truculência essa que chegou a ser bastante elogiada pelo governador do PSDB.

A grande mídia, como sempre, e respeitando o seu caráter reacionário de longa data, tratou logo de chamar os manifestantes de "vândalos irresponsáveis", chegando a dizer que a maioria dos jovens que lá se encontravam se manifestavam por algo que nem usam, visto que são de classe média e nem se utilizam do transporte público. A pergunta que fica é: quem disse que uma pessoa só pode se manifestar quando o assunto lhe diz respeito diretamente? Porventura a dor alheia deve ser ignorada e a política adotada deve ser a do "farinha pouca, meu pirão primeiro"?

Muito mais sagazes do que o governador paulista, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o ex-presidente Lula e a atual presidenta Dilma Rousseff manifestaram-se de forma a contradizer aquilo que agora até o governador Alckimin quer contradizer. Para FHC, "chamar os manifestantes de baderneiros é um erro". Para Lula, "ninguém consciente pode ser contra o movimento". Para Dilma, "manifestações pacíficas são legítimas no país". É claro que tudo se passa apenas agora, depois que o melhor e o pior já aconteceram; a polícia já bateu, o povo já se indignou e a mídia (ah, a grande mídia...) já mudou de lado!

Por mais que seja uma maldade proferir tal frase, tem tiro no olho que vale a pena ser tomado! Isso porque é o tipo de tiro que é tomado pelas "pessoas certas", isto é, por quem, na visão dos que almejam os votos, não deveriam nunca tomar. Em meio aos confrontos entre a tropa de choque e os manifestantes paulistanos, dois jornalistas da Folha de S. Paulo foram atingidos com balas de borracha nos olhos, o que pode fazer com que um deles perca a visão. Tal acontecimento fez mudar radicalmente a abordagem e posição dos meios de comunicação, que passaram a focar o abuso e a truculência policial, já que sentiram na pele dos seus o que é estar à mercê de uma polícia militar que só faz jus à uma época em que a palavra direito servia apenas para a justificação de torturas, exílios e mortes cruéis. 

O melhor de tudo é que a reação em cadeia, que não estava programada, aconteceu e já são várias as metrópoles com ruas e monumentos tomados por manifestantes. Agora não são apenas os vinte centavos paulistanos que contam, mas um montante engasgado de direitos não contemplados; educação, saúde, segurança pública, transporte digno e resposta responsável pela gastança com obras faraônicas para eventos que jamais terão a potência de um povo educado e saudável. É provável que as manifestações não cheguem a todo o resultado esperado e que os vinte centavos paulistanos venham mesmo a ser pagos pelos que não deveriam pagar mais por algo já bastante caro, embora extremamente precário. No entanto, é bom que se veja que o movimento popular não morreu. É bom saber que o povo ainda tem gana de ir às ruas e exigir um mínimo de respeito de quem parece não estar "nem aí para a hora do Brasil". Pode ser que não consigamos pagar menos por um transporte já bastante indecente, mas só de saber que o povo acordou, já dá um alento na alma, traz lágrimas sinceras aos olhos. O povo está nas ruas, meu Deus! O povo está vivo! Ainda é possível sonhar.

liberdade, beleza e Graça...

segunda-feira, 10 de junho de 2013

"Caminhos da espiritualidade"

O texto bíblico de Gênesis 21:14-21 traz uma das passagens mais tristes do livro sagrado dos cristãos; trata-se do despedimento da escrava Agar e seu filho Ismael. Como mostra o primeiro livro do cânon do Antigo Testamento, Agar era escrava de Abraão e Sara, sendo que esta última era estéril e, portanto, mulher inferiorizada numa sociedade onde a fertilidade e a grande prole, sobretudo de meninos, eram sinônimos de bênção divina. Em tal contexto, era muito normal a escrava ser usada para que o patrão pudesse ter um filho e ser socialmente bem estimado. Agar fora usada para isso e Ismael era o fruto.

Num belo dia, diz o texto, Abraão recebe mensagem teofânica que o tem por agraciado e digno de receber um filho de sua própria esposa, já idosa como ele, que já tinha cem anos de idade. A notícia não é totalmente crida em princípio, visto que a idade de ambos não ajudava. No entanto, a promessa de Javé se cumpre e Sara dá à luz um menino, Isaque. Abraão já não precisava da escrava para ser "mais homem" e o filho dele com Agar, vivendo o que quase todo pré-adolescente vive, caçoando do irmão menor, incomodava à patroa Sara, que pediu que o marido mandasse embora o seu próprio filho e a escrava Agar. Abraão se entristece muito, mas, ouvindo Javé, decide atender ao pedido da esposa, despedindo Agar e Ismael, com apenas um bocado de pão e um odre cheio de água. Mãe e filho pequeno andam errantes pelo deserto de Berseba, caminhando em direção à inevitável morte. O pão acaba, a água acaba.

A condição de mãe faz com que Agar não consiga participar da morte do filho pequeno, o que a impele a deixar o menino, provavelmente dormindo ou desmaiado de fome e sede, debaixo de uma daquelas tristes e secas árvores do deserto. Ao longe, a ex-escrava lamenta a má sorte e provavelmente justifica sua posição de inculpável naquela história toda, já que fora usada e expulsa depois, uma vez que não teria mais tanta "serventia" para os patrões. Ismael, voltando a si e percebendo-se só, chora copiosamente, estando já Agar a chorar e a provavelmente praguejar e lamentar a vida, com toda sorte de aceitáveis justificativas. Javé ouve o menino; ouve o choro de Ismael e ordena que Agar volte para pegá-lo, mostrando em seguida um milagre não percebido: um poço de água surge diante de Agar e seu filho. Água para ambos, forças para caminhar e promessa de que uma grande nação surgiria dali.

Embora o padrão mais aceito de família seja a estrutura pai/mãe/filhos, tal estrutura já não responde aos dramas da sociedade moderna. Já não é raro ver-se famílias onde existe o pai e não a mãe, onde existe a mãe e não o pai, onde existe o casal e não os filhos, onde existem os filhos e não os pais, onde aparecem dois pais, onde aparecem duas mães e até mesmo a chamada família uniparental, onde há apenas um integrante. A estrutura familiar mudou radicalmente com o passar dos anos e a mensagem embasada numa estrutura tradicional está cada vez mais obsoleta para a sociedade contemporânea. É como se as mensagens pregadas sobre a família não dissessem mais respeito a grande parte das casas que por elas são acessadas. Nesta direção de pensar, o texto bíblico aqui citado talvez possa ser fonte de inspiração para muitas mulheres abandonadas com os filhos, por exemplo.

Ao se atentar para o cuidado que Deus dispensa a Agar e Ismael, é possível inferir que a bênção do Senhor também pode estar aonde a estrutura familiar ganhou configuração diferente da tradicional. Não é porque não existe uma das partes da estrutura familiar mais "aceita" que a bênção obrigatoriamente vai faltar a uma família. É possível alcançar os mesmos lugares de uma família "normal", ainda que a configuração familiar seja apenas um pai com os filhos pequenos, uma mãe abandonada com sua prole etc. Apesar de toda desestruturação provocada por Abraão e Sara, Agar chega ao ponto que não é obrigatoriamente alcançado apenas por estruturas familiares "organizadas"; a ex-escrava, depois de secar as lágrimas e perceber o milagre da água, se percebe também detentora de uma bênção que a faz conquistar o mesmo que uma estrutura tradicional busca: consegue formar seu filho (o rapaz se torna flecheiro, profissão muito cara para uma época de grandes guerras) e o casa com uma mulher egípcia. O filho formado, o filho casado e o povo árabe para mostrar que, ao contrário do que muitos pensam, a bênção não respinga só em Israel.

liberdade, beleza e Graça...