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Graduado em Artes Cênicas, Teologia e Ciências Sociais. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF, Doutor em Sociologia pela UERJ e Pós-doutor em Sociologia Política pela UENF. Pesquisador de Relações Raciais, Sociologia da Religião e Teoria Sociológica. Professor do Instituto Federal de São Paulo.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

"Je suis Charlie, mas com ressalvas"

Uma intrigante frase, dita em sala de aulas em um Seminário Teológico, nunca me saiu da cabeça: "a religião é a caixa-preta do indivíduo". Tal frase, dita por um professor na época em que eu era estudante de Teologia, coloca-se como um dos caminhos para se pensar acerca do que motivou o acontecido na redação do semanário Charlie Hebdo, em Paris, quando dois irmãos, de posicionamento islâmico radical, mataram a sangue frio 12 pessoas, dentre elas 4 dos maiores cartunistas da França, que eram os principais alvos, uma vez que há tempos colocavam sua posição de antirreligiosos em cartuns que, para muitos islâmicos, são mais do que ofensivos; são blasfêmias. 

A caixa-preta, como é sabido, é o lugar dos segredos todos, sendo que os mais importantes são aqueles ditos em situações-limite, como os momentos que antecedem a morte. O melhor e o pior do ser humano podem estar contidos naquela caixa. Tudo o que explica a vida e a morte, bem como o que faz com que uma supere a outra, se encontram à disposição dos que acessam a caixa-preta. 

Sendo acertada a frase que há tempos toma conta da minha imaginação, a religião tem o poder de ser o divisor entre a vida e a morte, entre o dito e o não dito, entre o melhor e o pior do ser humano. Assim, mexer com a religião é mexer com emoções e fomentar posturas que podem trazer à tona tudo o que uma caixa-preta pode proporcionar, com todas as implicações disso, para o bem e para o mal.

O melhor e o pior do ser humano foram vistos na redação do semanário de humor francês, já que "o melhor" de um jihadista radical em sua postura "heroica" foi visto, bem como o pior, uma vez que foram assassinadas cruelmente pessoas que mexeram na caixa-preta e pessoas que nada tinham a ver com a situação. 

Não se pode, sob nenhuma hipótese, apoiar a postura dos irmãos radicais, mas é importante que se reflita acerca do "anti" presente na postura dos cartunistas; eles não se apresentavam como um grupo que percebia a religião como apenas mais um elemento das sociedades, mas se colocavam como adversários mesmo, independentemente da religião que estivesse em foco.

Apresentando-se como "antirreligiosos", abriram caminho para o embate, já que quem é "anti" se coloca automaticamente em um confronto, chamando o agora "inimigo" para a luta. Sem esquecer que o Charlie Hebdo foi também responsável por um dos atos mais abjetos de que se tem notícia na história do cartum, ao comparar a ministra da justiça francesa Christiane Taubira a uma macaca. Assim, não tenho crise em ser Charlie na luta antiterror, mas contra Charlie na luta para a supressão do racismo e dos preconceitos no mundo.

Reconheço, desconsiderando os vacilos acima descritos, que, para um sujeito que aprendeu política muito mais através dos cartuns do que nas aulas de Ciência Política na faculdade de Ciências Sociais, tendo colecionado a revista Bundas, acompanhado o Salão de Humor de Piracicaba, admirado a sagacidade da Mafalda, se encantado com os cartuns da revista Caros Amigos, bem como "pirado" com a inteligência das tirinhas do Henfil (que só conheci no final dos anos 1990, lendo-lhe a biografia), perder os humoristas do Charlie Hebdo (inspiradores de todos os que anteriormente citei) é uma tragédia imensa.

No que poderá ser pauta para boas reflexões e debates, mais uma vez se coloca a religião no centro da arena, trazendo novamente à tona a islamofobia mundial, a xenofobia europeia e os vigorosos sorrisos de certeza da ultradireitista Marine Le Pen, fomentando um discurso com potencial para tragédias de proporções ainda maiores. Tudo porque mexeram numa caixa que tem poder para matar infinitamente mais do que qualquer tragédia aérea. Ainda viciado em cartuns, mas de luto, je suis Charlie; ainda que com ressalvas.

liberdade, beleza e Graça...


4 comentários:

Liana disse...

Muito bem dito. Cartunistas e humoristas em geral, estão passando da crítica para o "anti", para mim, extremistas da mesma forma.

Unknown disse...

Olá Cleinton,

Quanto tempo...

Após ver uma foto sua no site da Faculdade Unida, fiquei curiosa para saber como você está. Mas, pelo que percebi você não compartilha do mal necessário chamado Facebook, o que tornou bem mais difícil o contato. Talvez seja esse o plano.
Enfim, após uma certa caminhada cheguei a este blog onde li muitas das suas reflexões. Devo dizer que permanecem na medida (in)exata, medida mais do que necessária para todos aqueles que sofrem com o dom de pensar e sentir em demasia.

Se desejar entrar em contato, será muito bom receber notícias suas.


Grande abraço,
Adriana

Unknown disse...

Muito bom o texto. Mas, é preciso ter cuidado para não fomentar um discurso a favor de uma censura, mesmo que inconsciente...

Fredy Fernandes disse...

Muito bom esse texto. Sugere boa reflexäo sobre essa linha tênue da liberdade de expressäo e de imprensa, e a liberdade religiosa e a ideologia religiosa.
Acredito que o fundamentalismo religioso faz com haja desproporcionalidade entre a açäo, de um lado, e a reaçäo, de outro. Grande é a miopia, desatrosos os dedobramentos.