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Graduado em Artes Cênicas, Teologia e Ciências Sociais. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF, Doutor em Sociologia pela UERJ e Pós-doutor em Sociologia Política pela UENF. Pesquisador de Relações Raciais, Sociologia da Religião e Teoria Sociológica. Professor do Instituto Federal de São Paulo.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

"A elite do atraso a nos explicar em detalhes"

Quando Antonio Candido leu o material que Sérgio Buarque de Holanda lhe enviou para receber um prefácio não teve dúvidas da qualidade do escrito, chegando a dizer que Raízes do Brasil era "um clássico de nascença". Por ser Candido o que era, um dos mais influentes críticos literários da época, dificilmente alguém ousaria contestar o valor que a obra de Sérgio Buarque teria para as Ciências Humanas e Sociais no decorrer dos séculos XX e XXI. Apesar de tal incontestada potência, no entanto, eis que aparece alguém para deixar a nós cientistas sociais com vergonha de ter fechado os olhos para algo que agora parece até óbvio; se, ao contrário de Candido, não tenho cacife suficiente para afirmar que uma obra já nasce clássica, ao menos posso, com toda segurança, afirmar que A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato, de Jessé Souza, já nasce paradigmática. 

O paradigma quebrado por Souza se dá no enfrentamento do pilar de sustentação da obra de Sérgio Buarque, uma vez que coloca em xeque o conceito de patrimonialismo, além de mostrar que, ao contrário do que fez o autor de Raízes, uma análise intelectualmente acertada do Brasil teria de ter a escravidão como foco, já que não se poderá mais aceitar que, como afirmava Sérgio Buarque, o Brasil guarda uma continuidade com Portugal, com o apossar de patrimônio público por entes privados, os donos do poder, uma vez que a escravidão é um acontecimento que não se deu em terras lusitanas nos moldes que aconteceram aqui, mas embasou toda a formação da sociedade brasileira, sendo o amálgama a construir as classes e as relações sociais que culminariam em um racismo velado, uma construção de cidadania de segunda categoria para os negros e, consequentemente, uma "ralé de novos escravos", como bem defende Jessé Souza. 

É claro que, como uma obra que pretende interpretar o Brasil, A elite do atraso também comete equívocos e Jessé Souza bem sabe que não faltarão críticas à sua obra, o que, de minha parte, merece lugar, visto que o autor parece escorregar em pelo menos dois momentos cruciais do escrito. Ao falar sobre racismo, Jessé afirma que "tudo é racismo", o que enfraquece o aporte conceitual que separa a questão de classe da questão racial, já que, ainda que se tenha criado uma "ralé de novos escravos", ser preto é muito diferente de ser branco nessa ralé de humilhados e abandonados pelo Estado brasileiro. Assim, é preciso separar classe social de raça e mostrar que, ao contrário do que defende a obra, nem tudo é racismo, pois a cor da pele ainda conta, e conta muito, o que não impede, porém, que brancos e negros pobres sejam contados como parte da mesma "ralé". Outro lapso que Jessé Souza deixa escapar é a linguagem demasiadamente panfletária da obra, sobretudo no final, quando a Operação Lava Jato, da polícia federal brasileira, toma a cena, visto que o caráter científico que deveria permear a obra acaba se perdendo, cedendo espaço para o que parece ser uma militância de esquerda, trazendo o risco de a obra ser tratada como um panfleto a defender o ex-presidente Lula e o PT, o que nem de longe é verdade, já que o livro é muito mais do que apenas essa pobre ideia. 

Se o conceito de racismo e a linguagem panfletária influenciam negativamente na potência da obra, é preciso afirmar com toda a certeza que tais "escorregadas" não tiram a força do escrito de Jessé, bem como não fazem da mesma menos paradigmática, uma vez que o grande avanço da obra se dá no enfrentamento do conceito de patrimonialismo, tão defendido por intérpretes do Brasil e seus seguidores, tão inspirados em obras como a de Raymundo Faoro (Os donos do poder), Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala) e o próprio Sérgio Buarque e o seu Raízes. Isso porque, seguindo na senda da teoria sociológica de Max Weber, Jessé Souza nos mostra que, para além de se evitar a ideia de continuidade com Portugal, por conta da escravidão que só aqui tínhamos como tínhamos, o conceito de patrimonialismo não deveria ser utilizado para se pensar as relações no Brasil Colônia, pois, como as esferas da vida (sistema político, sistema econômico, sistema educacional, imprensa etc) precisam ser independentes e autônomas para que haja o patrimonialismo, que é a colonização de uma esfera por outra, o Brasil Colônia, por não trazer tal separação de esferas, impediria de se pensar em governantes transformando o bem público em privado, já que tudo era uma coisa só, pertencendo aos donos do poder, e não havia, portanto, porque se falar em patrimonialismo. 

Para além do enfrentamento da ideia de patrimonialismo, Jessé Souza apresenta a classe média como a grande protagonista daquilo em que se transformou o Brasil, culminando no apoio quase que irrestrito e irreflexivo à Lava Jato, já que a classe média concebeu a ideia de meritocracia que a classe dos donos do dinheiro buscava para si, o que fez com que se buscasse por uma formação intelectual que pudesse justificar os ganhos daqueles que já nasceram em berço de ouro. Por outro lado, essa mesma classe média cederia a moralidade que as classes mais pobres defendem ter, já que é a classe que, ao contrário dos donos do dinheiro, também seria vítima da corrupção, e não a protagonista da falcatrua, que seria perpetrada só pelos mais ricos. Assim, a classe média seria aquela que mais explicaria o atual momento político brasileiro, visto que traria, num mesmo pacote, a moralidade dos pobres e o mérito de ter conseguido galgar degraus na pirâmide social (e chegando ao dinheiro) "pelo próprio esforço" (o que se configura em falácia, visto que não compartilha com os mais pobres do mesmo ponto de partida).

Ainda na senda da moralidade característica da classe média, outro elemento muito importante da obra de Jessé Souza é a moral que envolve a diferenciação entre a corrupção dos tolos e a corrupção real. No primeiro caso, o autor mostra como o foco da ideia patrimonialista só permitiu que se visse a corrupção de entes públicos, sobretudo políticos, mas ignorou propositalmente a corrupção real, aquela perpetrada pelo empresariado, os donos do dinheiro. Segundo o autor, enquanto a Operação Lava Jato se gaba de ter recuperado um bilhão de reais de propinas de políticos, que seria apenas a ponta do iceberg, pois representa os 2% ou 3% pagos "por fora", mais de 500 bilhões - que alavancariam a educação e melhorariam substancialmente a saúde de nosso povo - saíram do país, por conta de transferências feitas pelos maiores corruptos e corruptores, a classe empresarial. 

Por todas as razões acima expostas, a obra de Jessé Souza merece detida leitura e posterior reflexão, uma vez que explica, como poucas obras a interpretar o Brasil, as razões de sermos o que somos e de termos feito as escolhas que fizemos, sobretudo a que agora nos toma, com Jair Bolsonaro no poder, ainda que ninguém pudesse imaginar tal feito há poucos dois anos. Afinal, ao terminar a leitura do livro só consegui me perceber com o olhar perdido no horizonte, mas com a convicção plena de que eu tinha enfim entendido o que nos acontece agora, já que só pude dizer "então é por isso...".

liberdade, beleza e Graça...



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