Dois episódios marcaram as discussões sobre as relações de trabalho no Brasil recentemente. Em um deles, o dono de um restaurante pede desculpas pela demora no atendimento aos clientes, justificando que "o pessoal do Bolsa-família e da cervejinha não quer trabalhar". No segundo episódio, ocorrido na mesma quinzena do primeiro, um empresário reclama da falta de interessados em descarregar um contêiner com 950 caixas, achando um absurdo não conseguir três trabalhadores que topassem fazer o trabalho por 45 reais cada um, "com direito a um cafezinho no final". Talvez os dois empresários não consigam compreender as razões dos trabalhadores, que, em busca de um trabalho emancipador, cada vez mais se recusam a se envolver com o que conhecemos teoricamente como "trabalho alienado".
Segundo Karl Marx e Friedrich Engels, o trabalho alienado é aquele em que o trabalhador se vê "alheio de si mesmo", visto que não dita o ritmo do próprio fazer laboral, assim como não escolhe o salário e nem o horário, não conhece o todo, mas apenas uma parte do que faz, não se realiza no produto final e é controlado por forças externas a si, num processo de vigilância que mescla, segundo a historiadora francesa Michelle Perrot, um modelo religioso, baseado no silêncio absoluto, e um modelo militar, baseado na obediência total a uma hierarquia. Tais modelos, então, seriam os responsáveis pelo processo de "docilização dos corpos", teorizado por Michel Foucault, que, apropriando-se da ideia de panoptismo, de Jeremy Benthan, percebe um tipo de trabalho em que os operários são vigiados a todo tempo, mas que, por não conseguirem ver quem os consegue vigiar, mantém seus corpos obedientes, dóceis e produtivos.
Na tentativa de oferecer respostas para tal nocivo processo de "docilização", autores da chamada "Escola de Frankfurt" propuseram saídas para uma sociedade baseada na técnica e na busca pela eficácia total. Para Theodor Adorno e Max Horkheimer, a lógica competitiva do mercado faz com que os trabalhadores percam muito do prazer de sua atividade, visto que a técnica aplicada ao trabalho tem provocado a alienação do trabalhador e o esgotamento dos recursos naturais, defendendo tais autores que a subjugação da natureza é também a subjugação do homem pelo homem. Seguindo os mesmos princípios de tal escola alemã, Herbert Marcuse chama a atenção para o conceito de unidimensionalidade, visto que o trabalhador alienado deixa de ver as várias dimensões de um processo produtivo, associando o seu fazer a apenas um aspecto da vida, como se o trabalho fosse algo com o objetivo de atingir apenas uma dimensão, a do "trabalhar para pagar as contas", esquecendo-se de que, como diz a música "Comida", da banda Titãs, "a gente quer comida, bebida, diversão e arte", apontando-nos dimensões outras da existência, como o consumo e o lazer.
Embora o consumo seja quase sempre criticado, já que, em uma sociedade capitalista, sempre pode desbancar em consumismo, o filósofo francês Gilles Lipovetsky defende tal atividade como um fenômeno do nosso tempo, mostrando que a diversificação da oferta e a democratização do conforto e dos lazeres teriam o poder de diluir algumas regulações de classe, bem como criariam uma geração de consumidores em busca de cada vez mais qualidade dos produtos, além de exercitarem a capacidade de escolha, tornando a mercantilização das necessidades algo menos institucional e mais subjetivo e emocional. Todavia, o contraponto do sociólogo polonês Zygmunt Bauman é claro ao apostar na "irracionalidade do consumidor", já que "uma sociedade de consumo só prospera enquanto consegue tornar perpétua a não satisfação de seus membros".
A fim de harmonizar o que acima foi exposto, quanto a pensar trabalho, consumo e lazer, o filósofo e sociólogo Jürgen Habermas, expoente da segunda geração da Escola de Frankfurt, propõe que trabalho e vida devem ser dirigidos por tipos diferentes de agir. Para o mundo do trabalho, Habermas propõe o "agir instrumental", visando a busca da técnica e da eficácia, com tudo medido segundo critérios rígidos de avaliação. Para o mundo da vida, porém, o autor defende o chamado "agir comunicativo", que busca o consenso, com todos os indivíduos livres para expressarem suas ideias, sem que sejam interrompidos, tolhidos ou censurados. Na mesma busca, mas radicalizando ainda mais a proposta de Habermas, o sociólogo italiano Domenico de Masi propõe, não a separação de vida e trabalho, mas a junção de ambos, no que ele chama de "ócio criativo", que é quando se pode trabalhar ao mesmo tempo em que se vive, o que abre o mundo do trabalho para atividades sem premência de tempo e que permitam a elevação do espírito e a produção de ideias, o que nunca significará estar satisfeito apenas com o Bolsa-família e a cervejinha.
liberdade, beleza e Graça...
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