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Graduado em Artes Cênicas, Teologia e Ciências Sociais. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF, Doutor em Sociologia pela UERJ e Pós-doutor em Sociologia Política pela UENF. Pesquisador de Relações Raciais, Sociologia da Religião e Teoria Sociológica. Professor do Instituto Federal de São Paulo.

terça-feira, 30 de junho de 2015

"Malafaia, não me defenda: vá procurar uma pomba!"

Nos últimos dias, fomos atropelados por uma bizarra discussão entre o jornalista do Grupo Bandeirantes, Ricardo Boechat e o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, Silas Malafaia. Teve de tudo, como é sabido, chegando o jornalista a proferir uma frase que muitos gostariam de falar a Malafaia, já que este, ao ser confrontado, adora dizer que o sujeito que discorda dele é um asno, falastrão, falador de besteiras e que deveria topar um debate com ele, Silas, que deve ser um exímio debatedor, já que vive querendo provar a todos que está sempre com a razão, e nunca errado, sendo que me parece estar errado, mais uma vez.

Boechat denunciava o abuso de poder de alguns líderes evangélicos, o que é de conhecimento de quase todos, sobretudo daqueles que se dão ao simples trabalho de ler algum jornal ou acompanhar nas suas próprias igrejas a postura de líderes cada vez mais interessados em seu próprio umbigo, o que gera um distanciamento cada vez maior entre a demanda do povo cristão e o que segundo a Bíblia se espera de alguém que se autodeclara pastor de ovelhas.

A postura de Malafaia, agora, e como sempre, continua a ser a mesma: vai à justiça tentar retirar algum dinheiro de Boechat, o que não implicará em nada, já que o jornalista tem recursos para pagar, embora vá perder um bom tempo nisso tudo, uma vez que terá de enfrentar, além do tribunal, a cara de vitorioso de Silas, uma vez que o dito pastor, mais uma vez, tem tudo para ganhar, embora devesse perder, já que passou da hora de isso lhe acontecer.

Embora não represente o mundo evangélico como um todo, mas apenas um segmento dele, a imagem pública que Malafaia teimosamente oferece é a de que todo evangélico pensa e age como ele, o que seria uma pena, se fosse verdade, já que teríamos muito mais intolerantes no mundo, gerando mais e mais ódio, como o que tem fomentado a postura infeliz do líder assembleiano. Felizmente, não seguimos o Silas. Só que a opinião pública que é construída via grande mídia insiste em afirmar o contrário.

De mal a pior, Malafaia vai ajudando a construir uma imagem péssima dos evangélicos brasileiros, já que, de gente séria e que tem consigo uma ética que não lhes permitia o engano, a mentira, a intolerância e a corrupção, os evangélicos estão se tornando cópias de um homem que, pelo que demonstra, está muito distante do que Jesus pregou e viveu. Definitivamente, Silas Malafaia, com sua postura intolerante, grosseira e autoritária, não se assemelha em nada com a postura que Cristo ensinou e viveu.

Dá saudades de uma época em que o mundo evangélico era representado por gente boa de diálogo, gente conhecedora de política, gente boa de ouvido, gente de conversa sadia e sábia. Malafaia é bom de boca, mas é péssimo de ouvido. Sobretudo se o que tem a ouvir não é o que ele gosta e pretende sempre ouvir, isto é, a sua própria vontade. Assim, provocando uma separação que muito se assemelha à chamada "reforma radical", o dito pastor vai construindo um abismo entre os cristãos e o mundo que os cerca, provocando uma indisposição social que tem tudo para se tornar em uma ojeriza por evangélicos em pouquíssimo tempo. Há quem diga que isso até já existe. 

Se Malafaia soubesse pedir perdão e se reconhecesse que erra demais para um líder que se pensa quase inerrante, teríamos algo de bom a falar dele. Mas, como isso já parece ser algo utópico, só nos resta pedir que ele vá procurar uma pomba; a pomba da paz. Sim, melhor procurar outra ave, a pomba. Afinal, a rola o Boechat já o mandou procurar.

liberdade, beleza e Graça...


quarta-feira, 27 de maio de 2015

"Caminhos da espiritualidade"

O capítulo 21 do Evangelho de São João nos traz a história belíssima de um reencontro perdoador. Trata-se do reaparecimento, em carne e osso, segundo o relato bíblico, de Jesus de Nazaré, três dias depois de ter sido morto por seus adversários, líderes religiosos de uma Palestina dominada pelo Império Romano e pela religiosidade manipuladora de um sacerdócio judaico obsoleto. 

Se é possível tirar lições contemporâneas de um texto tão distante de nossa realidade, tais lições versam primeiramente sobre a postura incrédula dos discípulos de um nazareno seguido de bem perto por três longos anos. É curioso que nenhum dos seguidores de Jesus estivesse crente na sua ressurreição. Tanto que nenhum cogitou aguardar pelo reencontro provocado pelo próprio mestre.

Se o sonho havia acabado, nada mais restaria fazer, senão voltar ao que se fazia antes de conhecer "o caminho". Assim, num momento que parece fruto de um silêncio ensurdecedor, Pedro tem a ideia de pescar, voltar a fazer o que fazia antes, sem qualquer menção à garantia de ressurreição. Como ninguém mais tinha opção melhor, todos respondem "vamos contigo!", seguindo para o barco que enfeitava o lago. 

O problema é que, após um encontro genuíno com Jesus, é impossível voltar a se fazer o que antes era cotidiano e fruto de muita habilidade. O encontro com os adeptos do Caminho muda radicalmente uma pessoa, de sorte que, se esta, decepcionada com algum "desaparecimento" do mestre por uns tempos, tentar voltar à vida que tinha antes de tê-lo conhecido, dificilmente conseguirá fazer as mesmas coisas com a mesma qualidade. Quem roubava já não rouba tão bem, não esconde bem o produto levado e nem o semblante frustrado de vergonha. Quem matava já não tem o mesmo estômago, já não maneja bem a faca. Quem vivia de mentiras, ruboriza diante da possibilidade de ser descoberto. Quem pescava habilmente, já não sabe da lógica dos peixes. O encontro com Jesus muda tudo. Não se consegue ser mais o mesmo e não se volta ao passado sem um alto nível de frustração.

Jesus aparece na praia e grita aos discípulos se tinham pegado algo. Ao saber que não, insta-os a lançar a rede para o outro lado do barco, onde uma multidão de peixes os esperava. Cena conhecida; já vi isso antes, não?! Quando Jesus parecer ter decepcionado um indivíduo, tendo este voltado ao que antes fazia, a misericórdia divina sempre mostrará algo que lhe trará à memória aquilo que lhe poderá dar esperança. Um cântico, um panfleto, um convite para uma reunião; alguma coisa que o fará pensar: "eu já estive aí, eu já acreditei nisso tudo". 

João percebeu a nova oportunidade e gritou a Pedro que se tratava do Senhor. Pedro, o que tinha negado, mentido e somado uma série de razões para se perceber indigno de um reencontro perdoador, lança-se na água e nada ao encontro de Jesus, sem medo de ouvir "mas você não merece, pois me negou três vezes!". Enquanto Pedro nada, os outros chegam à praia no conforto do barco. Na areia, pão e peixe sobre a brasa. Um convite para comer, expressão máxima do cristianismo do Caminho.

Pode ser que o Cristo vendido a nós seja algo falso. Pode ser que, por conta disso, ele desapareça e seja reconhecido como morto e inoperante. Pode ser que voltemos às práticas antigas, refutando um encontro que converteu tudo e mudou positivamente o rumo de nossa história. Pode ser que nossos vacilos cotidianos nos convençam de que os que negam, mentem, roubam ou profanam o santo nome de Deus não merecem ser novamente recebidos por Jesus. 

Todavia, voltar atrás é impossível (pelo menos com a mesma habilidade), pois não se peca mais com a "qualidade de outrora". Não se sabe mais pescar tão bem como em tempos idos e, independentemente do que se possa pensar acerca das fragilidades nossas - e de nossa própria vergonha diante de um Deus inocente, mas por nós traído - o convite sempre estará ali. Pão, peixe, fogueira acalentadora e brisa de sobre as águas a referendar um "Vinde, comei!".

liberdade, beleza e Graça...

sábado, 25 de abril de 2015

"E a Operação Zelotes, você conhece?"

Todos os dias somos inundados por informações vindas dos veículos de mídia, mas quase nunca se pergunta sobre o que não é trazido. Nunca ouvi alguém esperar da mídia o que a mídia não revelaria. Sim, parece que somos acostumados a acreditar que a grande mídia de massas no Brasil traz à tona aquilo que tem de ser trazido, por pura obrigação social, compromisso com a verdade e responsabilidade de imprensa. Mas não é assim que a banda toca, já que desde março de 2014 ouvimos ininterruptamente falar da Operação Lava Jato, mas não conseguimos, nem com muito esforço, ter a grande mídia empenhada em dar míseras linhas para a Operação Zelotes.

Vendo e ouvindo panelaços e buzinaços em dias de fala da presidente do país, bem como de quaisquer de seus aliados, pergunto sobre as razões, e encontro falas que apontam para a Lava Jato, para a corrupção no país e para os desmandos de "um governo que o povo não quer mais", sendo que, como eu disse em texto anterior, não se trata do povo, mas da parte dele que não votou na presidente, segundo dados do próprio Instituto Datafolha. Mas, perguntando aos adeptos de tais barulhos, não encontro um sequer que conheça a Operação Zelotes. E me pergunto a razão, já que, perto de tal operação, a Lava Jato é apenas um cantinho onde se pode lavar um carro pequeno.

No intuito de contribuir, então, para o aumento do nível de informação e crítica de um contingente que se entende "informado e muito bem munido intelectualmente", apresento aquilo que não aparece em telejornal algum, em revista semanal golpista alguma, em nenhum anúncio que se mostre contra a corrupção no país. A Operação Zelotes investiga 105 mil processos, que totalizam um montante de 520 bilhões de reais em fraude tributária (sim, eu disse 520 bilhões!), sendo tudo escondido mediante propinas de montadoras de veículos, bancos privados, corporações de mídia etc.

A grande crise é: onde estão os "furos de reportagem", os "vazamentos de informação" (nos quais a Veja sempre se mostrou "especialista"), onde as "fontes idôneas", que nos possam revelar os nomes de gente de projeção nacional nos âmbitos político e empresarial? E onde está a opinião pública, que "não tolera mais a corrupção do PT"? Simplesmente não há. Opinião no Brasil é publicada e não pública, como já mostrei aqui, utilizando-me de teorização de um intelectual interessante chamado Patrick Champagne. Portanto, se a grande mídia não publica, se o Jornal Nacional não veicula, não há opinião pública, pois ela não se alimenta criticamente; só repete o que dizem ser a verdade.

A explicação para não termos opinião pública quanto a isso começa por uma afiliada da Rede Globo em Santa Catarina, a RBS, que, acusada de pagar 15 milhões de reais em propina para esconder um débito de mais de 150 milhões, se apresenta como razão, para lá de justificada, para que a emissora da família Marinho não dedique um minuto sequer a mostrar a corrupção que assola o país, via sonegação fiscal, algo que a "vênus platinada" faz com muita destreza em se tratando da Lava Jato e de quaisquer ilícitos praticados pelo PT, ou qualquer aliado de um governo que eles querem ver derrotado.

É claro que a Globo, via RBS, não é a única envolvida nisso tudo. Estão sendo investigadas a Ford, a Mitsubishi, a BR Foods, a Camargo Corrêa (que também aparece na Lava Jato), a Light, a Petrobrás, o Bradesco, o Santander, o BankBoston e o Banco Pactual. Tudo gente grande, tudo gente fina, tudo gente que bate panelas e faz buzinaços "contra a corrupção do PT", sendo que só essa turminha já usurpou de nossos cofres a bagatela de 5,7 bilhões de reais! 

O esquema, como não poderia deixar de ser, é sofisticado. Tais empresas atuavam junto ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão da Fazenda onde contribuintes podem contestar administrativamente (sem passar pela Justiça) certas tributações aplicadas pela Receita Federal. O negócio era reduzir - ou até fazer desaparecer - os débitos fiscais no Carf, controlando os resultados dos julgamentos por intermédio de pagamentos de propinas, como a de 15 milhões da afiliada da Globo, e deixando de pagar aos cofres públicos o montante assustador de 520 bilhões de reais, no total dos 105 mil processos investigados.

Por isso tudo, não vejo qualquer sentido ou empolgação em panelaços e buzinaços, pois trata-se de uma turma que, ou não sabe de nada, ou é gente que, achando que vai mudar o mundo e que está lutando contra a corrupção, está referendando uma situação muito mais corrupta, ainda que acobertada por uma inocência que vai sempre entender que lava jato é lugar de carro e zelotes são os membros do grupo ao qual também pertencia Judas Iscariotes. Se pelo menos esses apoiadores de um terceiro turno no Brasil, via panelaços e buzinaços, à luz deste texto, alcançarem tino para ligar a Operação Zelotes ao Judas, traidor da verdade, eu já estarei satisfeito. Mas duvido muito. Sabem de nada, os "inocentes".

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segunda-feira, 23 de março de 2015

"Não é o povo brasileiro; é uma parte dele"

No último dia 15, surgiu aquela que seria uma possível resposta à provocação aqui feita na postagem anterior, já que o caráter acomodatício do povo brasileiro parecia ter sido incomodado por este mesmo povo, que tomava as ruas das principais capitais e cidades do país. A sensação que se tinha era a de que o Brasil estava nas ruas, posicionando-se radicalmente contra aquilo que tinha escolhido há poucos meses. O tempo, todavia, era curto demais para que se mudasse de ideia, passando agora a imagem de que o que se fez nas urnas em outubro passado fora um grande burrice.

A ciência, no entanto, sempre é uma excelente auxiliar na luta contra a manipulação midiática, que sempre tenta transformar a opinião publicada por ela em opinião pública. Deste modo, no intuito de buscar uma refinada compreensão do que estava acontecendo, o Instituto Datafolha (que, sendo da Folha de S. Paulo, sempre se mostra contrário aos governos de esquerda, como o do PT) foi às ruas e fez pesquisas entre os milhares de manifestantes em todo o país. Resultado curioso, e talvez contra o que eles realmente gostariam de apresentar: 85% dos manifestantes eram eleitores de Aécio Neves e, portanto, de oposição ao governo Dilma.

Na grande mídia brasileira, e sobretudo na mídia internacional, a imagem vendida era a de que o povo brasileiro está contra a presidenta, ideia que, fomentada e incentivada pelas manchetes nada isentas dos grandes veículos de mídia, fez com que a popularidade de Dilma Rousseff caísse vertiginosamente, chegando quase ao patamar de um presidente impedido de continuar no poder, a saber, Fernando Collor de Melo, hoje senador da República.

Embora não haja razões jurídicas para tal, a ideia de impeachment passou a fazer parte do imaginário social brasileiro, lançando o caráter democrático da escolha de seu povo no lixo, e fazendo surgir exatamente o que a grande mídia deseja: retirar do poder aqueles que não lhes agradam, já que, embora não sejam mais tão radicais num discurso e prática de esquerda, esses governos não permitem que o mercado tome conta de tudo e de todos, algo tão sonhado pela direita que detém os meios de comunicação de massa no país. 

Um aluno, que se encantava com as manifestações, informando-me que agora acontecerão todo mês, já tendo a de abril pré-marcada, questionou-me então se eu estava feliz com tanta corrupção sendo revelada. Respondi na lata: "mas isso não é bom?!". É claro que a extremada juventude do aluno não o deixa entender a realidade brasileira, fazendo-o crer, via grande mídia, que a corrupção começou no Brasil "da Era Lula para cá". No entanto, foi um bálsamo para a alma ler uma entrevista da Revista Fórum com o grande fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, onde o mesmo proferiu esta pérola: "enxergamos a corrupção só agora, porque pela primeira na história do país os que estão no poder não são os mesmos que detêm os meios de comunicação". 

Pode ser que a turma antidemocrática do Aécio Neves, Aloísio Nunes, Agripino Maia e Álvaro Dias faça manifestações mensais, chutando as conquistas da democracia brasileira e desrespeitando a vontade da maioria, expressa nas últimas eleições. Mas, se eles têm chegado ao cúmulo de clamar por aquilo que pela Constituição Brasileira é considerado ilegal (a volta da ditadura militar), que repensem ao menos o que têm incluído em seus discursos, já que até a mídia internacional ficou estarrecida com o "chega de Paulo Freire!", jamais pensado para estar ao lado do "que voltem os militares!" ou do "fora Dilma!". 

É claro que, para os mais atentos à política nacional, o discurso e a prática da direita brasileira não surpreendem mais, já que sua fala chegou ao cúmulo de pedir pela "chegada do vírus ebola ao país, começando a matar pelas crianças do nordeste, aquele povo que não tem nada a ver conosco". No entanto, minha petição é uma só: mostrem a cara e não digam que é o povo brasileiro que está nas ruas contra a presidenta, pois a própria pesquisa científica refutou isso. Se não respeitam a democracia e não aceitam a derrota nas urnas, ao menos respeitem o Sebastião Salgado, pois a lente dele vê o que pouca gente consegue ver, visto ser uma janela da alma.

liberdade, beleza e Graça...


sábado, 14 de fevereiro de 2015

"O que teria acontecido com a primavera brasileira?"

Estando ele revoltado com o estado de corrupção atual (mas que vem logicamente de longa data) nas instituições, e perguntado-me acerca das razões de o Brasil ser o que é, respondi a um aluno que não é possível entender nosso país, senão lançando mão dos chamados "intérpretes do Brasil", grupo que abarca nomes como Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Raimundo Faoro, Florestan Fernandes e outros. Ainda assim, não é tão fácil responder à questão do tal aluno, já que o chamado Pensamento Social Brasileiro, campo das Ciências Sociais que busca entender a formação e as transformações da sociedade tupiniquim, precisa ser constantemente atualizado.

Colocando em pauta as manifestações de rua que tomaram o Brasil em junho de 2013, consideradas como uma revolução que acordou um gigante há muito adormecido, debatíamos sobre as razões de tais manifestações terem sido rapidamente ligadas à Primavera Árabe, movimento que sacudiu vários dos países do Oriente Médio e da África alguns meses antes da forçosamente chamada "primavera brasileira". A questão, então, era acerca do que de fato teria restado do movimento que parecia ter, enfim, acordado um gigante que teimava em querer não ser incomodado. Percebendo aumentos de preços muito mais robustos do que os que instigaram a nossa "primavera", bem como atentando para a nova formação do Congresso Nacional, ainda mais conservadora e autossuficiente, com uma classe política e empresarial imersa na sujeira que teima em crescer e se mostrar sem qualquer vergonha, chegamos à conclusão de que nada de concretamente positivo tinha sido alcançado, o que nos fez buscar as razões para isso.

Assim, com o olhar voltado para as teses de alguns dos intérpretes do Brasil dos anos 1930 e 1940, percebemos que o país é, desde a colonização, um país de caráter acomodatício, isto é, no Brasil, apesar de sempre acharmos que algo vem para radicalmente modificar as estruturas sociais, sempre existiu a possibilidade de se acomodar o grito dos insatisfeitos, fazendo-os logo se esquecerem do que os levou às ruas em atos mais do que justificados. Voltando às teses sobre o Brasil, vemos que, comparando os portugueses com os espanhóis, Sérgio Buarque de Holanda defende que não houve aqui uma colonização visando transformar o meio, algo mais radical, como no caso espanhol, mas uma colonização de adaptação ao que estava posto, sem que grandes batalhas ou mudanças estruturais fossem instigadas ou tidas como necessárias.

Pelo lado de Florestan Fernandes, falando sobre uma possível revolução burguesa no Brasil, o autor defende que a revolução possível aqui não foi popular-democrática, mas burguesa-autocrática, uma vez que o novo chegou sem que o velho tivesse sido vencido, isto é, as transformações que aqui ocorreram e ocorrem não trocam o arcaico pelo novo, mas são revoltas onde a acomodação entre o novo e o arcaico acontece de forma bastante branda, deixando o poder sempre nas mãos das mesmas pessoas, aquelas que Raimundo Faoro denominou justificadamente de seus "donos". Assim, vemos se formar um povo que, já desde a colonização, desde a sua formação enquanto nação, entende, olhando para os grandes desafios oriundos de uma postura revolucionária, que "não vale a pena".

Deste modo, fica a questão de como se poderia reconstruir uma nação, refundar um país, se é que é possível pensar em algo do gênero. O problema é que, quando tal consciência política a alguns de nós chega, a tendência é que tais pessoas já tenham se sobressaído em meio a uma multidão de famintos por respostas que nunca chegam. Neste momento, as duras cenas de um teatro da crueldade se estabelecem de forma efetiva, visto que a tendência é que, querendo conservar o que conquistamos e não querendo que o incômodo de uma revolução nos atinja, cheguemos à postura ratificadora de um discurso defensor de que realmente não vale a pena.

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quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

"Je suis Charlie, mas com ressalvas"

Uma intrigante frase, dita em sala de aulas em um Seminário Teológico, nunca me saiu da cabeça: "a religião é a caixa-preta do indivíduo". Tal frase, dita por um professor na época em que eu era estudante de Teologia, coloca-se como um dos caminhos para se pensar acerca do que motivou o acontecido na redação do semanário Charlie Hebdo, em Paris, quando dois irmãos, de posicionamento islâmico radical, mataram a sangue frio 12 pessoas, dentre elas 4 dos maiores cartunistas da França, que eram os principais alvos, uma vez que há tempos colocavam sua posição de antirreligiosos em cartuns que, para muitos islâmicos, são mais do que ofensivos; são blasfêmias. 

A caixa-preta, como é sabido, é o lugar dos segredos todos, sendo que os mais importantes são aqueles ditos em situações-limite, como os momentos que antecedem a morte. O melhor e o pior do ser humano podem estar contidos naquela caixa. Tudo o que explica a vida e a morte, bem como o que faz com que uma supere a outra, se encontram à disposição dos que acessam a caixa-preta. 

Sendo acertada a frase que há tempos toma conta da minha imaginação, a religião tem o poder de ser o divisor entre a vida e a morte, entre o dito e o não dito, entre o melhor e o pior do ser humano. Assim, mexer com a religião é mexer com emoções e fomentar posturas que podem trazer à tona tudo o que uma caixa-preta pode proporcionar, com todas as implicações disso, para o bem e para o mal.

O melhor e o pior do ser humano foram vistos na redação do semanário de humor francês, já que "o melhor" de um jihadista radical em sua postura "heroica" foi visto, bem como o pior, uma vez que foram assassinadas cruelmente pessoas que mexeram na caixa-preta e pessoas que nada tinham a ver com a situação. 

Não se pode, sob nenhuma hipótese, apoiar a postura dos irmãos radicais, mas é importante que se reflita acerca do "anti" presente na postura dos cartunistas; eles não se apresentavam como um grupo que percebia a religião como apenas mais um elemento das sociedades, mas se colocavam como adversários mesmo, independentemente da religião que estivesse em foco.

Apresentando-se como "antirreligiosos", abriram caminho para o embate, já que quem é "anti" se coloca automaticamente em um confronto, chamando o agora "inimigo" para a luta. Sem esquecer que o Charlie Hebdo foi também responsável por um dos atos mais abjetos de que se tem notícia na história do cartum, ao comparar a ministra da justiça francesa Christiane Taubira a uma macaca. Assim, não tenho crise em ser Charlie na luta antiterror, mas contra Charlie na luta para a supressão do racismo e dos preconceitos no mundo.

Reconheço, desconsiderando os vacilos acima descritos, que, para um sujeito que aprendeu política muito mais através dos cartuns do que nas aulas de Ciência Política na faculdade de Ciências Sociais, tendo colecionado a revista Bundas, acompanhado o Salão de Humor de Piracicaba, admirado a sagacidade da Mafalda, se encantado com os cartuns da revista Caros Amigos, bem como "pirado" com a inteligência das tirinhas do Henfil (que só conheci no final dos anos 1990, lendo-lhe a biografia), perder os humoristas do Charlie Hebdo (inspiradores de todos os que anteriormente citei) é uma tragédia imensa.

No que poderá ser pauta para boas reflexões e debates, mais uma vez se coloca a religião no centro da arena, trazendo novamente à tona a islamofobia mundial, a xenofobia europeia e os vigorosos sorrisos de certeza da ultradireitista Marine Le Pen, fomentando um discurso com potencial para tragédias de proporções ainda maiores. Tudo porque mexeram numa caixa que tem poder para matar infinitamente mais do que qualquer tragédia aérea. Ainda viciado em cartuns, mas de luto, je suis Charlie; ainda que com ressalvas.

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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

"Eu não consigo respirar"

Existe uma diferença muito grande entre a resposta que é dada ao racismo vivenciado no Brasil e aquela que é oferecida pelos estadunidenses. As duas sociedades são extremamente racistas, mas cada uma se relaciona com o tema ao seu modo, o que até já fez pensar que racismo é coisa dos Estados Unidos da América do Norte, mas não da República Federativa do Brasil, sendo essa uma das mais aberrantes falácias desta república de bruzundangas.

Para se perceber o racismo brasileiro é preciso, em primeiro lugar, ser negro - de preferência preto, já que os pardos também fazem parte deste grupo. Tendo essa característica, já é possível perceber a estrutura racial brasileira sem dificuldades, uma vez que a experiência cotidiana já justifica a diferenciação no trato, nas oportunidades oferecidas e no usufruto de benesses como o acesso aos postos de liderança, à educação de qualidade e à saúde eficiente; tudo confirmado nos números oferecidos pelo Censo e analisados pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - IPEA.

Também é possível perceber o racismo brasileiro sendo uma pessoa branca, já que tal oportunidade foi oferecida a um adolescente em conflito com a lei, numa situação bastante elucidativa: justificando uma marginalidade não vivida pelos brancos, mesmo os brancos pobres, já que não se poderia mensurar a renda no episódio, uma juíza de direito brasileira, tendo diante de si um adolescente branco e de olhos claros para julgar, disse: "mas o que um rapaz branco, loiro e de olhos claros como você faz aqui?!". A pergunta da juíza se mostra, infelizmente, como simples retórica. Na cabeça dela, e na da maioria de nossa racista população, aquele lugar era para um negro; jamais para um branco. Só é "normal" um negro estar ali!

Nos Estados Unidos a coisa é mais clara. Lá, tal como cá, existe lugar e coisa de branco, bem como lugar e coisa de negro; a diferença é que o branco e o negro se assumem como diferentes na "terra da liberdade e da oportunidade". Entendem-se como diferentes, pois vivem isso, já que as abordagens policiais e as prisões contemplam muito mais os negros, assim como acontece no Brasil, só que lá eles mensuram e denunciam isso. A pobreza e a falta de oportunidades atingem mais aos negros lá, assim como acontece cá, mas na América de lá eles calculam e fazem saber disso tudo a todos.

Quando Eric Garner, um negro asmático, vendedor de cigarros, foi abordado e assassinado covardemente por um policial branco há poucos dias, um traço da sociedade estadunidense estava posto, chamando a atenção do mundo para um país que teima em querer ser exemplo de liberdade e igualdade entre os seus cidadãos. É importante notar que não se vê a situação oposta por lá; um policial negro abordando um homem branco. Isso porque lá, como cá, os postos de chefia, de melhores salários e de autoridade estão nas mãos dos brancos, ficando aos negros a tentativa de respirar em meio a um lugar que, definitivamente, parece não ter sido feito para eles. Matar asfixiado um negro desarmado, de mãos para cima, e confessando não conseguir respirar não rendeu nem o indiciamento do policial branco!

Ao presidente dos Estados Unidos, Barack Hussein Obama, que, "branqueado" por uma mentira defensora de que todos são iguais perante a lei e as oportunidades naquele país, ficará sempre a condição de ver, impotente, um seu igual - em todos os sentidos - ser morto sem defesas diante das câmeras, experimentando aquele presidente a resignação de alguém que nada pode fazer, já que sua cor não consegue fazer o que conseguiu a do pastor batista Martin Luther King Júnior, que, mesmo negro em uma terra aonde os fracos não têm vez, conseguiu viver e morrer para que os negros pudessem respirar.

liberdade, beleza e Graça...