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Graduado em Artes Cênicas, Teologia e Ciências Sociais. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF, Doutor em Sociologia pela UERJ e Pós-doutor em Sociologia Política pela UENF. Pesquisador de Relações Raciais, Sociologia da Religião e Teoria Sociológica. Professor do Instituto Federal de São Paulo.

domingo, 27 de novembro de 2016

"Deu Trump; deu o óbvio"

O que parecia impossível aconteceu: Donald Trump se elegeu presidente dos Estados Unidos da América do Norte. E isso, contra a maioria da imprensa, da classe artística, dos movimentos sociais, contra um contingente imenso de imigrantes, contra muitas das associações de classe etc. O que realmente seria impossível de se pensar para o Brasil, por exemplo, aconteceu por lá, na nação mais poderosa do mundo, em termos bélicos e econômicos.

No Brasil, como é sabido, a coisa jamais poderia acontecer assim. Afinal, o chamado "quarto poder", o poder da mídia nesse país, ainda consegue eleger ou impedir a eleição de um candidato. E, para quem acha que não, e cita Lula da Silva como referência, é importante relembrar que Lula só foi eleito após um grande acordo costurado com a classe empresarial - para a qual o ex-presidente acenou favoravelmente, escolhendo um empresário como vice, ao contrário do que todos os militantes de esquerda esperavam -, assim como fez um grande compromisso com credores internacionais e com a mídia, sobretudo a Rede Globo de Comunicações, através da conhecida "Carta ao povo brasileiro", onde Lula se comprometia a não fazer o que dizia que faria, se eleito, quando era de um PT bem mais à esquerda, "bem mais vermelho". 

Mas, voltando aos Estados Unidos, e ao agora muito conhecido Trump, se todos eram contra, incluindo o povo, que escolheu Hillary Clinton, como foi que aquele bilionário sisudo e contra todos conseguiu se eleger? Em primeiro lugar, é preciso conhecer a ideia de democracia desenvolvida nos Estados Unidos. Ideia essa que encantou Alexis de Tocqueville, autor de "A democracia na América", obra em que Tocqueville mostra como o respeito à Constituição e às instituições moldou o povo estadunidense.

Ao contrário do que acontece em várias partes do mundo, a democracia nos Estados Unidos não é um reflexo direto do voto popular. Tanto que nesse quesito, o voto popular, Donald Trump não venceu! Sim, no modelo de democracia estadunidense não é preciso ter o voto da maioria para se eleger. Existem delegados eleitorais e pesos diferentes para cada estado da federação. Assim, mesmo com menos votos, Georg W. Bush se elegeu, tal como aconteceu agora com o bilionário Trump.

É importante lembrar também que uma das maiores buscas do sistema democrático dos Estados Unidos é a evitação da tirania. Desde a fundação daquela nação que os puritanos - religiosos ingleses que migraram para a América - tentam evitar qualquer tipo de tirania, uma vez que fugiram da Inglaterra justamente para isso. Desse modo, o medo do aparecimento de tiranos fez com que o sistema de governo deles buscasse sempre um dos pilares das democracias aperfeiçoadas: a alternância no poder. 

Por conta disso, então, dificilmente o sistema de governo de lá deixaria o partido democrata 16 anos direto no poder. E, mesmo se isso acontecesse, a obrigatória mudança nas cadeiras do Congresso durante o mandato presidencial ajuda no sistema democrático, uma vez que, se o presidente estiver se equivocando, o congresso em geral se torna mais oposicionista, durante sua gestão, o que o faz encontrar freio para quaisquer intenções tirânicas e de perpetuação no poder. É por isso que Tocqueville enxergava ali um capitalismo  muito forte e um sistema demasiadamente liberal, acreditando esse autor que os Estados Unidos praticavam a centralização governamental, mas a descentralização administrativa, ao contrário da Europa, onde acontecia a centralização governamental e também a centralização administrativa, ambas pelo poder do Estado.

Aliado a tudo isso, e pensando nos dias de hoje e na eleição última, é importante lembrar que o mundo passa por uma imensa crise econômica e por um processo migratório que não acontecia desde a Segunda Guerra Mundial. Nessa direção, é crucial que lembremos que, em tempos de crise, as posturas conservadoras se sobressaem, já que todos querem defender o que têm, gerando um sentimento xenofóbico e etnocentrista que beira à maldade e ao ódio, como se pode ver na Europa, algo que encontrou resposta nos discursos nada amigáveis de Donald Trump, tido agora como saída para os problemas econômicos e sociais, o que lança luz sobre os "culpados" pelo desemprego e pela queda na qualidade de vida dos cidadãos estadunidenses.

Como será esse governo de Donald Trump, não se sabe ao certo. O que se sabe é que ele representa o que os estadunidenses valorizam como o que de mais nobre um cidadão daquela nação pode ter: foco no mérito, coragem para encarar os opositores, ainda que seja a imprensa livre, destemor ao criticar abertamente o que lhe parece errado - ainda que não seja realmente errado - e um discurso etnocêntrico que não enxerga o tamanho das outras nações, já que só intenta "fazer a América grande de novo". 

liberdade, beleza e Graça... 


quinta-feira, 27 de outubro de 2016

"A PEC 55 e os 200 anos em dois"

A Coreia do Sul, há quase 40 anos, decidiu que a educação seria prioridade, e que isso faria daquela nação uma potência econômica e tecnológica. Os anos se passaram e o investimento feito por aquela nação redundou em marcas e patentes que agora invadem o mundo, conquistando a confiança dos mais variados mercados, incluindo o brasileiro, que agora elogia produtos e marcas sul coreanas, como é o caso da Hyundai, uma das marcas de veículos mais vendidas no Brasil, e da Samsung e da LG, marcas de eletrônicos também muitíssimo respeitadas por essas terras e mundo afora.

Com tal investimento, o PIB per capta subiu de 100 dólares no final dos anos 1960 para quase 10 mil dólares em 2002, mostrando que a escolha da Coreia do Sul, país que não queria mais ser subserviente em termos de marcas, patentes e tecnologias, estava correta, já que as marcas sul coreanas de eletrônicos citadas acima ultrapassaram a conhecida Sony, algo impensado antes do investimento da nação asiática. É a educação mostrando os rumos de uma nova potência que surgiu. 

Aqui no Brasil a coisa anda no sentido inverso: ao invés de 40 anos de investimento, serão 20 de cortes, já que atualmente o país entende educação como gasto, o que o fará congelar, pela vontade do presidente Michel Temer, grande parte do que se investiria em educação e saúde nas próximas duas décadas. É claro que tal medida não vem por intermédio de uma consulta popular ou votação em plenário de Câmara e Senado - se é que tais casas fazem grande diferença hoje - mas como Proposta de Emenda Constitucional, o que a faz ser uma lei de cima para baixo, autoritária de início ao fim.

O governo não levou em consideração os estudos feitos pelo IPEA - Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, que mostram um empobrecimento da população sem precedentes para os próximos 20 anos, dado o alcance que tal PEC terá na vida dos brasileiros e brasileiras, sobretudo os das classes mais baixas. Ademais, com a população vivendo mais, o caos no sistema de saúde, que já é de dar vergonha, será muitas vezes multiplicado, como mostram os estudos do instituto supracitado. O salário mínimo, seguindo a lógica da tal nova lei, terá perda real que, se pensássemos em tal medida 20 anos atrás, teríamos hoje uma renda mensal mínima que não chegaria a 500 reais, como mostra o mesmo estudo.

Sem exageros e sem conotação político-partidária, podemos ver que, com um governo voltado para o empresariado, e reduzindo direitos trabalhistas e sociais nessa magnitude, caminhamos a passos largos para transformar o Brasil em um dos países mais pobres do mundo, afastando-nos definitivamente da Coreia do Sul e nos aproximando de países como Serra Leoa e Haiti, sem desmerecer as dificuldades e lutas pelas quais esses dois últimos passaram. Por isso, podemos afirmar com certeza que, se Juscelino queria fazer 50 anos em cinco, Temer pretende 200 em dois. Sim, se a lógica se estabelecer, serão necessários uns 200 anos para se reconquistar o que em 2 já começamos a perder. É um mandato curto, é verdade, mas os efeitos poderão ser seculares, pois, embora ainda não pareça, o Haiti, dentro de 20 anos, será mesmo aqui, o que nos dá já hoje grandes razões para Temer.

liberdade, beleza e Graça...


sexta-feira, 23 de setembro de 2016

"Caminhos da espiritualidade"

O texto bíblico encontrado no Evangelho de São João, no capítulo 4 e entre os versos 5 e 30, narra a história de uma solitária mulher samaritana e seu encontro com Jesus, que chega pedindo-lhe da água que estava sendo retirada na chamada Fonte de Jacó. Pensando com cabeça de hoje, o texto nada tem a nos dizer, já que não passa daquilo que chamaríamos de "um encontro muito normal e cotidiano".

Acontece, porém, que a época narrada (o primeiro século da era cristã) e a cultura judaica em relação ao povo samaritano - bem como a condição social de então da mulher - nos obriga a olhar o texto com olhos mais atentos e com uma abertura exegético-hermenêutica que acaba por mostrar a potência de um encontro com Jesus muito mais pelo caráter social que tal encontro pode proporcionar do que por uma possível atitude miraculosa e adivinhadora. 

Atentando, pois, para os detalhes do texto, vemos que se tratava da chamada hora sexta, isto é, meio dia, e em um Oriente Médio extremamente quente. Isto posto, podemos perceber a primeira questão social envolvendo a mulher que resolvera buscar água; o horário era bastante adverso e a tal samaritana estava sozinha, o que não era comum em se tratando de tal tarefa doméstica, já que a tradição mostrava mulheres sempre em grupos buscando água nas fontes existentes. 

A razão da solidão da mulher, como muitos já inferiram, pode estar ligada à sua condição de "mulher largada", já que a mesma morava com um homem sem estar com ele casada e estava separada de outros cinco maridos oficiais que tivera. Assim, nada mais comum para a época do que não acompanhar mulher com um histórico "tão negativo", o que a fazia buscar água sozinha no pior horário possível, que era quando nenhuma outra mulher desejava fazê-lo.

Solicitada a compartilhar de sua água com o forasteiro que chegara, a mulher estranhou que um judeu se aproximasse sozinho de uma mulher, samaritana, e ainda lhe pedisse um favor. Primeiro por uma questão de gênero, já que não era comum uma mulher ficar "de papo" com um homem que não fosse seu marido, ainda mais sendo este homem um judeu, povo que não se dava bem com os samaritanos. Segundo, porque, ao fazer o pedido, Jesus, quebrando as assimetrias sociais da época, conversou a sós com uma mulher, largada de cinco maridos, amasiada de um homem com o qual não tinha se casado e, ainda por cima, de etnia chamada de "cão" pela maioria dos judeus.

Embora tenha conversado e citado várias coisas sobre a vida pregressa da mulher, o que poderia ser entendido como uma grande adivinhação, encantando e surpreendendo a audição daquela samaritana, o que mais chama a atenção no texto é o empoderamento que tal encontro proporciona àquela mulher, uma vez que o fato de Jesus ter ignorado todas as assimetrias e regras sociais para dar atenção à samaritana fez com que ela também passasse a ignorar tais assimetrias, correndo à cidade e contando sobre Jesus a pessoas que jamais lhe dariam crédito, dada a sua condição social, aqui já citada.

Assim, creio que o que deve chamar mais atenção no texto não é o fato de Jesus ter adivinhado o passado da mulher, mas a motivação e o empoderamento social que nela ele gerou, ignorando e fazendo-a também ignorar tudo aquilo que era caro e socialmente estabelecido por todos e para todos, a saber, as assimetrias sociais rígidas e geradoras de desigualdades imensas, sobretudo de gênero.

Movida por um gesto impensável da parte de um judeu, a samaritana adentra a cidade, conquista a audiência de homens que jamais a ouviriam, ganha crédito para suas palavras, antes totalmente desacreditadas, e convence a todos a terem também um encontro com aquele que ela agora reconhecia como Messias e Cristo, o que também nos deve inspirar a buscar Jesus, mas sem pensar em curas miraculosas para próprio corpo e para a própria vida, mas, muito mais importante do que isso, cura para uma sociedade machista, racista e classista, que há muito faliu.

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terça-feira, 23 de agosto de 2016

"Do Projeto Escola sem Partido"

Para além do momento político brasileiro, que terá desdobramentos sociais ainda não imaginados, dadas as manifestações contra a destituição da presidente Dilma Rousseff - que tenderão, pelo que já se começa a ver, a tomar as ruas das principais cidades da nação -, outro tema bastante caro tomou e ainda tomará as pautas nos próximos dias. Trata-se do projeto chamado Escola sem Partido. 

Com pilares bastante conservadores a sustentá-lo, tal projeto visa colocar limites ao que os professores ensinam em sala de aula, sobretudo em se tratando de questões políticas e fomentação de crítica ao sistema social vigente. Para tal, o Escola sem Partido entende que deve ser vedado ao professor proferir qualquer opinião pessoal, qualquer ideia que possa parecer de seu interesse próprio, incluindo-se aí as preferências ideológicas, políticas, morais, religiosas ou partidárias. Também fica a ele vedado beneficiar ou prejudicar qualquer estudante por conta de sua convicção política, ideológica, religiosa ou moral, bem como fica colocada a obrigatoriedade de os professores apresentarem da mesma forma e com a mesma intensidade as diferentes correntes do pensamento acerca de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, assim como fica o professor obrigado a oferecer um ensino que esteja de acordo com as convicções morais dos pais dos estudantes. 

Embora à primeira vista o projeto pareça ser razoável e até fazer sentido em alguns aspectos, o que se pode perceber é que uma formação crítica ao sistema social vigente não poderá encontrar lugar nas salas de aula, visto que o foco do combate são os pensamentos chamados de esquerda ou socialistas. A prova disso é que a religião - que quase sempre tendeu a demonizar qualquer pensamento à esquerda, visto que este sempre foi considerado um pensamento ateu  - o que contradiz excelentes escritos de Engels, Rosa Luxemburgo e Gramsci - entra como mote para que uma moralidade de cunho religioso e extremamente conservadora se estabeleça como mais racional do que uma crítica ao estado desigual de coisas numa nação onde o abismo entre ricos e pobres é imenso.

Ao falar do Escola sem Partido, a antropóloga Yvonne Maggie diz que "trata-se na verdade de um debate entre laicidade, ideologia e religião nas escolas". Por isso, na contramão do que pretendem os idealizadores do Escola sem Partido, uma visão mais progressista, além de criticar a intromissão na atividade docente, que tolhe a liberdade de expressão dos professores e enfraquece a fomentação da crítica, defendem, como quer a promotora federal de direitos humanos Deborah Duprat, que  "a criança vai para a escola porque a educação em casa é insuficiente, ela precisa conviver com outras visões de mundo". Como é sabido, a pauta conservadora, como a do Escola sem Partido, não abre espaço para visões que se diferenciem das suas, negando opiniões contrárias à homogeneização do pensar, bem como a inclusão dos pleitos de grupos minoritários e muitos dos movimentos sociais. 

Em um momento político deveras delicado, no qual a manipulação midiática de fatos e a transformação de opiniões publicadas em opinião pública se dá de forma descarada pelos grandes meios de comunicação do país, o Escola sem Partido nada mais faz do que fortalecer ainda mais um discurso contrário a uma visão de mundo pluralista, fomentadora de um cidadão que, por a cada novo dia perder mais e mais a sensibilidade que permite perceber a força da manipulação que o envolve, se preocupa menos com a política do que com o Pokémon Go.

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quarta-feira, 20 de julho de 2016

"Operação Zelotes: não passaremos mais o Brasil a limpo"

Enquanto a maioria da população entende - obviamente que inundada por "informações" de uma mídia nada imparcial - que a Operação Lava Jato é o maior patrimônio atual do Brasil, significando por isso a possibilidade de se ferir de morte a chaga da corrupção tupiniquim, a operação que deveria ter mais atenção, mas que é quase que totalmente ignorada pela grande mídia - e por razões bastante óbvias - é a chamada Zelotes.

Responsável por investigar as propinas pagas pelas maiores empresas e empresários brasileiros junto à Receita Federal, a Operação Zelotes tem em sua lista de acusados os chamados "peixes grandes", isto é, o grupo que sempre dominou o Brasil, tanto política quanto economicamente. Se conseguisse mandar para a prisão tais corruptos e corruptores, a Zelotes prenderia o presidente do Bradesco, o das Organizações Globo, o do Bank Boston, o da Mitsubishi, entre outras figuras "intocáveis" da nação.

Acontece, todavia, que aquela que poderia ser uma substancial ajuda para tal feito realmente histórico, a CPI do CARF - Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, encerrou suas atividades sem qualquer indiciamento e sem sequer chamar aos depoimentos as figuras acima citadas. Assim, ainda que a Globo tenha pagado mais de 15 milhões em propinas, a fim de abater um débito de mais de 150 milhões, jamais será chamada às responsabilidades, bem como o Bradesco, que teima em passar a imagem de "bom moço", num revezamento de tocha que consegue o paradoxo de jogar na escuridão a verdade que pela maioria é infelizmente ignorada.

Não se pode prever o fim da Zelotes, assim como já aconteceu com a CPI que envolve a mesma, no entanto, será importante acompanhar os próximos passos de tal operação, já que, sem uma cobrança e pressão popular, tal operação corre o risco de ser lançada para fora do jogo político brasileiro, assim como a ovacionada Operação Lava Jato, já que esta última parece ter se tornado uma perseguição direta a determinado grupo político, mostrando - ainda que a tática seja a de não mostrar - que "quem não está sendo falado, provavelmente não pode ser taxado com as mesmas nomenclaturas atribuídas ao Partido dos Trabalhadores e seus seguidores". 

Portanto, com a Lava Jato chegando ao ponto de colocar o nome da atual etapa de "Resta Um", fica difícil acreditar que, tornando Lula inelegível em 2018, num processo que pode ser tão obscuro quanto o do impedimento de Dilma Rousseff, ainda reste algo para o midiático juiz Sérgio Moro fazer. Talvez, depois do "um" que resta, Moro decida buscar o descanso que a elite defenderá que ele merece. Afinal, o juiz terá trabalhado muito e, chegando em investigações a partidos como o PSDB e o DEM, será o momento mais propício para entrar em "merecidas férias". 

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sexta-feira, 10 de junho de 2016

"Três crianças de uma sociedade que faliu"

Numa semana, uma adolescente foi estuprada por um grupo, que pode ter chegado a trinta pessoas. Na outra, um menino de 11 anos foi morto pela polícia militar de São Paulo, baleado na cabeça. Noutra semana, ainda, um adolescente funkeiro, concedendo uma entrevista, disse que, se a jornalista quisesse, ele a poderia estuprar, "quebrando-a ao meio", num motel, tão logo a entrevista terminasse.

Ao pensarmos sobre a mentalidade dos brasileiros, podemos ter a temática da infância como algo a nos mostrar quem somos e o que temos como caro em nossa sociedade, o que nos levará, infelizmente, à conclusão de que nossa sociedade faliu há tempos. Isso porque a forma como as histórias narradas acima são apreendidas e "justificadas" pelos cidadãos brasileiros tem a capacidade de nos chocar ainda mais do que as próprias histórias. 

O machismo nosso de cada dia faz com que as redes sociais virtuais apresentem "justificativas" para o estupro coletivo acontecido no Rio de Janeiro, uma vez que a "culpa" pode ser pelo fato de a menina ser funkeira, usar roupa curta, topar sair com gente que frequenta baile funk, aceitar transar na casa do namorado etc. Por outro lado, também se consegue "justificar" o tiro na cabeça de um menino de 11 anos, já que "a cidade precisa se livrar da criminalidade" e de crianças que "não terão mesmo futuro", fazendo a polícia o "serviço que precisa ser feito", a fim de limpar a cidade, proporcionando uma vida melhor aos "cidadãos de bem". Do mesmo modo, perceber que, ao propor estupro a uma profissional em plena atividade laboral, um adolescente pode receber o título de "viril" e "símbolo sexual", também mostra o adoecimento de uma sociedade que não sabe mais para onde caminha.

Embora tenha ficado cada vez mais difícil falar em "coisas de antigamente", ser conservador ainda tem seu lugar, sobretudo pela necessidade de não se aceitar passivamente a falência de uma visão totalizante, pelo menos em termos éticos. Isso porque é impossível acessar com precisão a visão fragmentada de sociedade da chamada pós-modernidade, bem como ter clareza sobre a vida a ser vivida, após a leitura pós-estruturalista (com as inerentes dificuldades em se apreender a fluidez e a liquidez do mundo atual), sem que se veja tentado a voltar aos tempos em que uma visão mais englobante, socialmente compartilhada, determinava o que era uma família e o que significava o certo, o justo, o adequado, o belo.

Na fragmentação e liquidez da época atual, envolvida em redes sociais virtuais, perdemo-nos em narrativas que não se conseguem firmar para além de 144 caracteres, fomentando uma sociedade monossilábica, onde exigir uma explicação que justifique as escolhas se tornou motivo de revolta, quiçá, de chacota. Afinal, todos os posicionamentos parecem ser corretos, ainda que não se possa embasar a muitos deles em dados e com um mínimo de historicidade e ética. Por conta disso, então, o foco sempre estará na possibilidade de não se ter foco ou base argumentativa para o que quer que seja, o que nos leva a analisar "os motivos que a garota deu para o seu próprio estupro", "a vida sem futuro que o menino baleado já levava" e a "inspiração viril" do sex symbol do funk, Mc Biel.

liberdade, beleza e Graça...