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Graduado em Artes Cênicas, Teologia e Ciências Sociais. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF, Doutor em Sociologia pela UERJ e Pós-doutor em Sociologia Política pela UENF. Pesquisador de Relações Raciais, Sociologia da Religião e Teoria Sociológica. Professor do Instituto Federal de São Paulo.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

"Por que o Darcy Ribeiro não pode ser salvo?"

A soteriologia é a chamada doutrina da salvação; mais uma daquelas partes espinhosas da Teologia Sistemática. Espinhosa porque coloca na pauta de reflexões e debates um tema que, de tão controvertido, quase sempre acaba por ser entendido apenas se for na base do dogma: é assim porque é assim e pronto. Todavia (e, para alegria minha, sempre existe um todavia!), não são todos os que recebem um dogma religioso sem crítica, por mais simplificada que esta seja.  

Pensei no tema da salvação humana ao relembrar uma entrevista do genial antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro. Tomado por um câncer que teimou até que conseguiu nos tirar mais um privilegiado cérebro, Darcy deu uma entrevista ao jornalista Roberto D´Ávila, onde, além de falar do que mais entendia, Antropologia e formação do povo brasileiro, falou de religião. Falou da religião dos índios, da religião alheia, da religiosidade de sua própria mãe, que para ele era admirável, e, enfim, da sua própria.

Confesso que poucas vezes na vida eu senti tanta compaixão por alguém em relação às questões que tangenciam a espiritualidade, haja vista a declaração de Darcy Ribeiro de que gostaria muito de ter fé, mas que não conseguia ter. Na minha cabeça juvenil, aquilo não fazia o menor sentido; como é que alguém pede, clama, deseja intensamente ter fé e não consegue? Não consegue ou não pode? Eis a questão.
Segundo a doutrina católico-romana, seguida de perto por grande parte dos evangélicos, a fé é uma questão teologal, isto é, é uma espécie de "imposição" de cima para baixo, do Soberano D´us para os humanos.

Não depende, pois, de alguém querer tê-la, mas de o Soberano decidir derramar tal dom sobre um indivíduo. Isto, obviamente, nos remete ao corpus doutrinário calvinista, para o qual a decisão sobre a salvação humana - que segundo o texto bíblico só pode acontecer por meio da fé na obra de D´us, intermediada por Jesus Cristo - não cabe em nenhum aspecto ou momento ao ser humano. D´us decide e está consumado. Ponto.

Ponto? Aceitando o dogma pelo dogma, ponto. Sem aceitá-lo assim, reticências. Reticências porque o texto bíblico por várias vezes coloca o foco na participação humana no processo de salvação. Segundo a maioria dos textos que abordam a temática, é necessário que o ser humano diga "sim" à proposta divina. Não ser salvo é dizer "não" à tal proposta de D´us em Cristo. 

Muitos, apressadamente, vão afirmar que a carta de Paulo aos efésios justifica o caráter teologal da fé, mostrando que o texto é claro quando diz que "pela graça sois salvos, mediante a fé, e isso não vem de vós, é dom de D´us, não de obras para que ninguém se glorie". Sim, é difícil confrontar tal passagem do capítulo 2 de Efésios. Todavia (outro todavia!), é preciso pensar a respeito de qual dom se está tratando no texto em questão, visto que temos ali graça e . Seria loucura ler "vocês são salvos, para ninguém se gloriar de si mesmo, pela graça, que é um dom de D´us, e isso é mediante a fé de vocês"? 

Alguns poderão argumentar que minha tradução é forçada e que o dom oferecido é mesmo a fé. No entanto, abre-se espaço para outra problematização da questão, já que, se a fé é mesmo um dom teologal, não importando se a pessoa quer ou não, visto ser dada aleatoriamente pelo Soberano, que culpa tem de não crer aqueles aos quais foi negada a possibilidade de crer? Quero crer, mas, como D´us não deixa, como Ele não me permite, como me nega isso...

Antes da minha exclusão definitiva, gostaria de dizer que esta é apenas mais uma reflexão de um professor de Teologia Sistemática. Não é para ser levada tão a sério. Ou deveria ser?

liberdade, beleza e Graça...

quinta-feira, 19 de julho de 2012

"Da greve nas universidades federais"

O presente texto bem poderia chamar-se "Porque não precisamos mais de certos jornalistas". Poderia também trazer o título "Opinião publicada não é opinião pública". A ideia era ter mesmo mais de uma possibilidade de título, assim como fazia Shakespeare com algumas de suas peças. No entanto, ficou a provocação para o corpo do texto, uma vez que o tamanho do título poderia assustar e polemizar demais a questão - já bastante polêmica - que dá razão a este escrito.

Como é sabido, as universidades e institutos federais estão em greve, num processo que já dura mais de 60 dias. Neste tempo, foram várias as tentativas de negociação, sendo que, como sempre acontece nas greves do pessoal da educação, o governo vai protelando o acordo até que a opinião pública e a opinião publicada não possam mais ficar caladas. Foi o que aconteceu; ano eleitoral, semestre de aulas praticamente perdido, mídia veiculando a torto e a direita e, enfim, proposta do governo. Embora tal processo ofereça possibilidades muitas para a crítica, o foco do presente texto está na apreensão jornalística de tal movimento grevista e de seu possível desfecho. 

Como era de se esperar de uma classe para a qual nem se precisa mais de diploma universitário, os jornalistas acorreram de forma demasiado afoita para aquela que chegou a ser chamada de "proposta definitiva" do governo. Sem material intelectual para uma contestação crítica do que recebiam, tais profissionais chegaram a veicular nos conhecidos jornalões e nas matérias das grandes redes de comunicação televisiva a "irrecusável proposta de 48% de aumento nos salários dos professores". O governo, com o apoio completamente acrítico da classe jornalística da grande mídia, passa agora a posar de mocinho, num acordo que só não seria aceito por bandidos, já que a "definitiva proposta" pareceu, à maioria absoluta, irrecusável em todos os seus aspectos.

Acontece, porém, que, se bem feitos, os cálculos da "proposta irrecusável" trazem retrocesso e perdas salariais, ao invés do tal ganho de quase 50%. Sim, se atentar-se para a realidade da proposta, ver-se-á que o fato de se ignorar a inflação do período até 2015 - dando um aumento sobre o salário bruto dos professores - faz com que não se tenha ganhos, mas perdas, num processo que poderá fazer a classe docente universitária ganhar em três anos até 11% menos do que ganha hoje! Sem atentar para simples cálculos matemáticos, os jornalistas acríticos correram para noticiar uma proposta que "só não seria aceita por quem quer tumultuar", esquecendo-se de fazer as simples contas que os fariam perceber que o maquiavelismo do governo brasileiro faz inveja a muitos dos ridículos tiranos, ditadores na antiga América católica.

O governo federal diz que "a proposta é um marco na negociação com a classe docente universitária", mas qualquer indivíduo atento pode ver que se trata de mais uma falácia de um ministério que afirma categoricamente não poder comprometer 4 bilhões de reais com a educação pública, mas que gasta - em subsídios e renúncia fiscal - comprometedores 15 bilhões com universidades privadas! 

Portanto, se a grande mídia continuar no processo de perpetuação do crime de transformar opinião publicada em opinião pública, não demorará muito para que as casas dos bandidos professores - "que só tumultuam e não aceitam o que todo mundo teria a obrigação de aceitar" - sejam queimadas por uma população "muito bem informada", inconformada com "um bando de vagabundos que não quer trabalhar!".

liberdade, beleza e Graça...

domingo, 1 de julho de 2012

"Amizade é a alegria da presença"

São vários os ditados populares que permeiam a nossa história. Um dos mais falados, mas que agora passou a me incomodar em demasia é o "amigo é pra essas coisas". Como é sabido de todos, usa-se tal máxima quando se quer mostrar que amigo é aquele que tem a obrigação de quebrar todos os galhos, fazendo favores os mais variados - de preferência, sem reclamar! - e entendendo que sua função numa relação é mesmo essa.

Porém, e para contrastar com tal dito popular, lançando mão de uma fala de Jesus, apresento uma afirmação quase esquecida do Novo Testamento: "Já não lhes chamo servos, mas amigos". A fala neotestamentária é bastante elucidativa, uma vez que opõe de forma clara a amizade e o serviço. É óbvio que, se temos um amigo, sempre desejaremos, mesmo não sendo este o principal foco, servi-lo naquilo que ele precisar e pudermos oferecer. No entanto, a oposição feita por Jesus nos coloca diante de uma outra e bastante importante abordagem sobre a amizade. O foco dela não é o favor.

O conceito de amizade, sabemos, tem variadas abordagens, sendo que todas defendem como sendo algo bom e bonito. Contudo, o intuito da presente reflexão é, à luz de tal afirmação jesuânica, problematizar - também de forma autobiográfica - aquilo que é chamado de amizade pela maioria das pessoas, a começar pelos que não suportam ter um número pequeno de "amigos internéticos". Sim, aqueles que se alegram ao máximo, pois já podem cantar - podendo mesmo provar em números - a conhecida canção "eu quero ter um milhão de amigos".

Voltando à fala de Jesus, ela parece mostrar que não é o número de "pessoas virtuais" que podemos ter, nem são, por outro lado, os favores que as pessoas próximas podem nos oferecer, mas a simples e alegre presença de uma pessoa sincera em seus sentimentos o que, ao fim e ao cabo, conta para que possamos afirmar categoricamente: "eu tenho um amigo". Sim, a amizade é a alegria da presença. Talvez seja por isso  que não confrontamos a máxima que defende o cachorro como o melhor amigo do ser humano. O que importa para ele é a presença; ele se alegra, pula e rejubila simplesmente porque seu dono está presente.

Depois de muitos anos percebendo a amizade como troca de inúmeros favores, decidi parar e refletir sobre tal conceito. Enquanto eu refletia, sem me obrigar a continuar "amigo por favores", os amigos sumiam. Outro dito popular diz que, não havendo dinheiro ou favores, eles acabam mesmo por sumir. Cheguei a ter 300 "amigos" no Orkut, mas tudo só funcionava se a virtualidade nos "unisse", nada além. Não poderia ser real. A alegria do cachorro (com perdão da força da sentença) não existia nem em parte, infelizmente. Cancelei o Orkut e nunca quis fazer parte do Facebook ou de quaisquer outras redes "sociais", que, no final das contas, são só novas e tecnológicas maneiras de mentir para si mesmo, que é o pior tipo de mentira.

Não sei quantos amigos eu tenho e não vou ficar "na neura" por conta disso. Mas, mesmo sem querer aqui lembrar de todos, prezo por pessoas para as quais eu não posso oferecer nada, exceto a minha presença. Pessoas como o meu eterno professor Luiz Carlos, o Adão e sua esposa Suzana, o Lobão, a Fabiana, o Willen, a Liana, o Carlos Frederico, a Mileda, o Nelsinho, a Norma. Sim, sei que tenho mais alguns, mas os aqui citados me vieram mais rapidamente à cabeça, pois não se cansam de me falar: "cara, vem pra cá; vem jogar conversa fora!". O melhor de tudo: não tenho nada a lhes oferecer. Eu só preciso estar presente. É a presença o que conta; a minha para eles e a deles para mim. Eles ficam felizes. Eu fico feliz. É a amizade.

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terça-feira, 19 de junho de 2012

"Caminhos da espiritualidade"


O texto bíblico do Evangelho segundo São Lucas apresenta no capítulo 8 (entre os versos 40 e 56) dois eventos de cura que curiosamente se sobrepõem. Como a Bíblia é fruto de uma edição que por vezes se equivoca, pode ser que originalmente os dois eventos não tenham ocorrido ao mesmo tempo. Todavia, parece bem plausível que o equívoco não tenha ocorrido ali e que tenha mesmo havido uma simultaneidade nas curas narradas, pois não há bruscas rupturas nas ações citadas pelo evangelista.

A passagem bíblica narra a aflição de Jairo, chefe de uma sinagoga judaica, por conta da grave doença de sua pequena filha, que estava já à beira da morte. Enquanto desce para a casa de tal importante homem, Jesus, apertado pela multidão, é tocado por uma mulher, anônima, com fluxo hemorrágico grave, o que também a colocava à beira da morte.

A sistematização que faz a Bíblia apresentar alguns números quase que de forma cabalística nos coloca nesta passagem diante do número 12, numeração que aproxima de forma curiosa a filha de Jairo e a mulher da hemorragia. O número 12, como é sabido, expressa uma totalidade para a tradição judaico-cristã, totalidade essa que remete às 12 tribos de Israel, nos levando também aos 12 discípulos, já que Jesus era judeu e não deixaria de cumprir a regra.

Numa análise comparativa, temos no texto uma série de possibilidades para se justificar a exemplaridade dos eventos bíblicos aqui estudados, pois é preciso estar atento para o fato de ser um homem, chefe de sinagoga, e que tinha tudo para gastar, em contraposição a uma mulher, que nem marido tinha para acompanhá-la, e que já não tinha recurso algum, pois havia gastado tudo com médicos, sendo que sem qualquer sucesso. Ao mesmo tempo, trata-se de Jairo, homem de quem todos queriam aproximação, e de uma mulher, sangrando e morrendo, com a qual ninguém queria (e nem podia, pois a mulher sangrava, o que a tornava impura) qualquer contato. O mais importante; trata-se de um homem que tinha uma filha morrendo com apenas 12 anos de vida, contrapondo-se a uma mulher vivendo já com 12 anos de morte. Um homem, chefe, rico, cercado de gente e com os apenas 12 anos da moribunda filha lhe martelando a cabeça e lhe tirando a paz. Uma mulher, anônima, pobre e sozinha, com 12 anos lhe tirando as últimas esperanças de viver, mas ao mesmo tempo a lançando à guerra. Jairo buscava a paz na cura da filha, a mulher buscava a cura na guerra contra uma estrutura social imposta, pois precisaria vencer as barreiras de uma sociedade machista, religiosa e autoritária para poder tocar Jesus como nenhuma outra pessoa poderia tocar.

Jesus responde às duas: à filha de Jairo - ressuscitando-a, pois quando ele chegou em sua casa a menina já estava morta - e à mulher do fluxo de sangue, secando-lhe a hemorragia. Mas a maneira de fazê-lo, como quase sempre acontece nas posturas daquele nazareno, não é a mesma. Ainda que a totalidade e a exemplaridade dos 12 anos acompanhassem a ambos, o caminho de Jairo é o que chamo de caminho da religião, onde, seguindo todas as regras protocolares, o foco está no que Deus pode fazer, a independer do que eu faça. O caminho da mulher é o caminho da espiritualidade, quebrando quaisquer protocolos, e onde o foco está no que eu posso fazer com meu ato espiritualmente revolucionário, a independer do que Deus e o sistema façam.

Por misericórdia e graça, Jesus recebe e responde a homens, religiosos, ricos e afamados, mas nunca deixa de olhar de forma singular para quem o toca de forma única, fora dos padrões protocolares e mediadores da religião imposta, ainda que o toque venha de alguém pobre, sozinho, desprezado e, para chocar ainda mais a tudo e a todos, de uma mulher.

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sábado, 2 de junho de 2012

"Mas, afinal, o que é o neoliberalismo?"


A temática que este ensaio pretende abordar diz respeito a um movimento de viés tanto político quanto econômico que, mesmo não sendo sequer percebido pela maioria da população, conseguiu infiltrar-se nos mais variados setores das sociedades ocidentais contemporâneas; o neoliberalismo
Embora para muitos essa corrente seja citada como algo etéreo e que simplesmente “já está dado”, o neoliberalismo tem um início bem marcado e demarcado na história da humanidade. Segundo Perry Anderson, o neoliberalismo foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar. Seu texto de origem é “O caminho da Servidão”, de Friedrich Hayek, escrito já em 1944
Por mais incrível que possa parecer, a teoria que entende que a “desigualdade é positiva”, foi corroborada por intelectuais de renome como Milton Friedman, Karl Popper, Walter Lipman, Michael Polanyi e outros, que formaram a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, contrária ao keynesianismo e ao solidarismo reinantes na época do pós-guerra.
Para Hayek e seus amigos, o Estado de bem-estar social e qualquer outro tipo de igualitarismo destruíam a liberdade e o espírito de concorrência, dos quais dependia a prosperidade de todos. Para eles, os danos das sucessivas crises econômicas, a de 1973 em especial, poderiam ser creditados à força dos sindicatos e dos movimentos operários, que tinham, com sua enorme força e poder de cooptação, impedido o acúmulo de riquezas, que é a base do capitalismo. Por conta disso, romper o poder dos sindicatos e buscar a estabilidade monetária como meta principal era a tese primeira dos neoliberais.
            A partir de 1979, segundo Anderson, a ideia neoliberal toma conta de boa parte do ocidente; na Inglaterra, foi eleito o governo de Margareth Thatcher; nos Estados Unidos, o de Ronald Regan; na Alemanha, o de Helmut Khol; na Dinamarca, o governo de Schluter. Todos eles, um a um, contribuindo para uma onda direitista no mundo contemporâneo, ratificando as teses de Friedrich Hayek e da Sociedade de Mont Pèlerin.
            O ideário neoliberal, contrapondo qualquer manifestação socialista/comunista ou de solidarização, tomou conta dos principais países do Ocidente, implementando políticas como a das privatizações de estatais, a redução de impostos em favor dos mais ricos, a elevação das taxas de juros, para benefícios dos especuladores, e a supressão pela força de quaisquer movimentos grevistas. A contrapartida veio de países do sul da Europa, onde uma tentativa de resistência de euro-socialistas parecia ter alguma força. Mitterrand, na França; González, na Espanha; Soares, em Portugal; Craxi, na Itália e Papandreou, na Grécia, foram algumas tentativas de barrar a onda neoliberal. Com o tempo, porém, verificou-se que os países resistentes tinham sucumbido à tentação neoliberal, inclusive adotando posturas ainda mais à direita do que o primeiro grupo. Ao final dos anos 1980, apenas Áustria, Suécia e o Japão - este último fora do velho continente - ainda conseguiam resistir à onda que tomava a todos com força e argumentos, mesmo perniciosos, num movimento que conseguiu derrotar o sindicalismo e se estabelecer, controlando greves e diminuindo salários, já a partir dos anos 1980.
            Saber se houve êxito na busca neoliberal é uma das proposições que hoje, à luz da grave crise econômica e social europeia, nos colocamos. Para tanto, é preciso notar que de fato os neoliberais conseguiram se estabelecer com bastante imponência, visto que conseguiram diminuir a tributação dos salários mais altos em 20%, conseguiram fazer com que os valores das bolsas crescessem quatro vezes mais do que os dos salários e, com deflação, lucros exorbitantes e salários baixos, tal corrente conseguiu mesmo se posicionar com “destaque” no mundo contemporâneo. Todavia, a principal busca do neoliberalismo, que era alcançar a reanimação do capitalismo avançado mundial, com taxas de crescimento consideráveis, não aconteceu. Não houve crescimento, apesar de todo o movimento que se colocava.
            Com a convicção de que não se cresceu e que o foco dado não na produção, mas na especulação estava errado, os neoliberais precisavam dar uma resposta ao esgotamento do sistema de ideias suas. Enquanto muitos, nos finais dos anos 1980, já esperavam o último suspiro das ideias de Hayek, eis que a União Soviética sucumbe, dando ao neoliberalismo um novo fôlego de vida. A outra opção, pois, parecia se mostrar ainda mais derrotada. Por conta disso, bastava que outros verdadeiros “culpados” pelo fracasso neoliberal fossem encontrados. Os bilhões de dólares gastos pelos Estados em pensões e aposentadorias passaram a ser um “bom culpado”. O desmonte de vários sistemas estatais de seguridade começou, então, a se ensejar, dando ao neoliberalismo a sua faceta mais cruel e violenta.
            A América Latina respondeu à onda neoliberal de forma bastante curiosa; não refutando-a, mas, ao contrário, corroborando-a. O Chile de Pinochet, na verdade, até foi neoliberal antes da Inglaterra de Thatcher, como defende Perry Anderson. A Bolívia, por seu turno, também foi território para que a doutrina neoliberal, ali aplicada por Jeffrey Sachs, fosse aperfeiçoada e mais tarde aplicada com sucesso na Polônia e na Rússia. Curiosamente, a Venezuela foi o país que conseguiu escapar à onda, visto ser ela a democracia mais contínua e sólida da América do Sul, tendo conseguido inclusive escapar dos desmandos das ditaduras militares que ocuparam a América Latina, conforme palavras de Perry Anderson.
            Diferentemente do que queriam os analistas e teóricos na época do governo de José Sarney, não é a torcida do contra (aquela que apregoava uma hiperinflação para “ensinar o povo” que a saída neoliberal era a única possível), mas a atenção aos fatos que não precisam de falsos argumentos o que poderá ser uma saída possível. Prova disso é que a região do capitalismo que mais apresentou êxitos nos últimos anos foi a menos neoliberal; Japão, Coréia, Formosa, Cingapura e Malásia.
            Embora o neoliberalismo tenha alcançado êxitos não imaginados nem por muitos de seus próprios fundadores, os países acima citados, e suas experiências à margem das ideias de Hayek, podem ser uma boa fonte de respostas para aqueles que se pretendem opositores da Sociedade de Mont Pèlerin, bem como para que repostas urgentes cheguem à Grécia, Espanha, Portugal e outros que estão à beira da falência. O Brasil, por incrível que pareça, retomou uma ideia keynesiana e, com investimentos em infraestrutura, acabou se dando ao luxo de chamar a onda da crise de "marolinha". A França de Hollande, diferentemente da de Sarkozy, parece querer seguir a rota tupiniquim em busca de ondas menos assustadoras. Agora é esperar para ver um novo fôlego que o capitalismo globalizado poderá oferecer, ou, o que seria bem melhor, ouvi-lo, pela boca da senhora Ângela Merkel, chanceler alemã, um sonoro e muito bem vindo PERDEMOS!

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domingo, 6 de maio de 2012

"Lugares comuns e o fantasma da inutilidade"


A película Lugares comuns, de Adolfo Aristarain (disponível em DVD), é um daqueles filmes que têm tudo para dizer nada, mas que dizem tudo. O argumento central, focado num processo corriqueiro de aposentadoria de um professor já idoso, trabalha algo que o sociólogo Richard Sennett chama de “fantasma da inutilidade”, em sua excelente obra A nova cultura do capitalismo (Record, 2006).
           
Como bom fomentador de debates, função que têm tido muitas das películas argentinas dos últimos anos, o filme de Aristarain mostra o cotidiano de um professor de literatura extremamente hábil em sua função, mas que, por razões mais do que simplesmente de idade, é forçado a deixar seu posto de trabalho, sendo substituído ulteriormente por outro indivíduo.
           
A questão da idade, responsável apresentada pela demissão do professor Fernando Robles (vivido pelo excelente Federico Luppi), é na verdade um pretexto para que oposições de pensamentos sejam excluídas do meio acadêmico argentino no período pós-ditadura. A convicção libertária do professor Fernando, baseada fortemente nos ideais da Revolução Francesa, incomoda o reitor da universidade onde Robles trabalha, gerando o mal-estar que acaba por colocá-lo na rua.

Se o foco fosse apenas o filme, a responsabilidade desta resenha se encerraria no momento em que se expressasse a poesia dos dizeres do professor, bem como quando se focasse a mudança de moradia e de estilo de vida do casal Robles, além das consequências da viagem à Espanha, feita por eles, a fim de visitar um filho que lá vive sob as honrarias de um capitalismo selvagem e darwinista. Porém, a obra de Sennett revela um bom argumento para se pensar a postura do professor aposentado.

Sennett, lançando mão da obra do economista Albert Hirschmann, mostra que os funcionários mais velhos de uma empresa têm menos medo de serem demitidos, uma vez que conhecem bem o “caminho das pedras” dentro do ambiente de trabalho, e, justamente por conta disso, acabam por dar vazão à sua voz de protesto, incomodando fortemente o empregador. Por outro lado, funcionários jovens não reclamam, pois preferem sair e procurar outro lugar, uma vez que não têm conhecimento dos caminhos a serem percorridos antes de conquistarem a tal voz. Fernando Robles conhece bem as estruturas da universidade onde leciona e, aos 67 anos de idade, pouco se importa com as consequências do dar vazão a sentimentos e ideologias que o acompanham há muito.

Assim, o que se vê e ouve é algo que realmente pertence a um indivíduo que aprendeu o que significa a palavra sensatez. Apesar da idade um tanto avançada, um dos focos do filme e do argumento que justifica esta resenha, a obra de Aristarain traz a possibilidade de se manter a lucidez e os ideais, mesmo que o mundo esteja dizendo o oposto, com as suas estruturas “modernas”, viciadas e reacionárias.

À luz das obras de Aristarain e Sennett, então, pode-se perceber que o fantasma da inutilidade não ronda sem que algumas boas respostas lhe sejam dadas. A lucidez de quem vive o que acredita acaba por fazer daquele elemento fantasmagórico um ridicularizado incentivador de uma sociedade homogeneizadora do pensar e do agir. Todavia, o professor, transformado em camponês, não deixou de firmar seus pés em terreno lúcido e provocador de mudanças, ainda que para isso tenha precisado mudar para o campo, fazendo assim uma revolução do pensar naquele que, para os mais pobres e desvalidos, ainda é um lugar bastante comum.

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sexta-feira, 27 de abril de 2012

"O aniquilacionismo: teoria para um Javé menos irado"

Dentre os vários assuntos propostos pela Teologia Sistemática, o juízo final e suas consequências talvez seja o tema mais árido e espinhoso. Isso porque parece que é sempre muito difícil explicar a possível articulação entre o Javé do Antigo Testamento e o Jesus do Novo. Para uma gama considerável de teólogos, tal articulação é até impossível, uma vez que, à luz da leitura da "personalidade" de tais elementos, fica mesmo muito difícil não atrelar ira ao primeiro e amor incondicional ao segundo.  

A leitura assim posta é apressada, claro, pois ao atentarmos bem para algumas posturas e falas de Jesus de Nazaré, encontraremos resquícios de uma "genética que não nega a si mesma". Embora tenhamos construído um cânon dentro do cânon, a fim de ensinarmos apenas parte do que a Bíblia diz - e do jeito que a gente acha que ela realmente diz -, tal coletânea de livros nos apresenta um Jesus por várias vezes bem diferente do que querem as nossas leituras cerceadas. De resposta duríssima a uma mulher desesperada, por conta da possessão da filha - e à própria mãe, no episódio das bodas em Caná da Galileia! - a frases como: "Não vim trazer a paz, mas a espada"; "Não vim unir, mas separar pais e filhos, irmãos e irmãs", além do ato bastante irado de chicotear camelôs no templo, Jesus mostra aspectos de uma personalidade bem pouco explorada pelos nossos púlpitos. Talvez sejam estes os aspectos a justificarem uma concordância dele com a proposta "javista" de juízo, algo que, se bem analisado por nós, faz com que, no sentido que estamos aqui buscando elucidar, os dois sejam realmente um.

Entrando, então, no cerne do assunto que justifica o presente texto, falar de Javé é também falar de um Deus que preparou - desde antes da fundação do mundo, segundo relatos bíblicos - um dia de duríssimo juízo. Neste dia, conforme tais relatos, Jesus estará em pé, como justo juiz, tendo consigo o poder de, na presença de Javé, julgar todos os seres humanos de todas as épocas, lançando uma pequena parte num paraíso e uma imensa maioria num lugar que, para que a imagem seja bem fixada em nossas mentes, chama-se lago de fogo e enxofre. Lançadas neste lago, as pessoas que não tiveram seus nomes encontrados num livro de Deus - chamado de Livro da Vida - por não terem aceitado as propostas de Javé, na recepção a Jesus Cristo, serão perturbadas eternamente, sendo que o fogo infernal de tal lugar tem poder para queimar, mas não para consumir, uma vez que o intuito é que a danação não tenha mesmo um fim.

Discordando, porém, que Jesus e Javé tenham a mesma "carga genética irada", os teóricos do chamado aniquilacionismo se mostram descrentes em relação a tal postura de juízo e propõem alguns argumentos que buscam afastar Jesus de Javé - mas com outra possibilidade de leitura - mostrando aquele como realmente bom e este como irado, mas apenas enquanto "justificador de uma época bélica veterotestamentária". Como as épocas mudam, todavia, e tendo a postura amorosa de Jesus ganhado o mundo, convencendo-o quase que completamente acerca de uma ética cristã, já não caberia mais uma proposta de juízo tão radical, ficando o texto bíblico como uma alegoria, uma metáfora do que realmente seriam o céu e o inferno, haja vista o contexto histórico no qual o texto de Apocalipse foi produzido.

O aniquilacionismo defende, então, que haverá aniquilação dos indivíduos maus e de todos aqueles que não aceitaram a proposta divina de reconhecer Jesus como o Dei Verbum, a Palavra de Deus. Assim, tais pessoas serão totalmente destruídas, ficando eternamente aniquilado o mal. Mostrando, deste modo, uma "bondade divina", atrelada à incoerência de uma forma de castigo que refuta tal bondade, tal processo de aniquilação seria muito menos cruel, pois seria mais justo do que condenar à eternidade de danação alguém que pecou apenas por alguns anos, já que a vida na terra é curta demais. A frase que aqui poderia ser usada como ilustração é: "se pequei por 80 anos de vida, por que tenho de pagar eternamente?". Outro argumento aniquilacionista é o que entende que a presença eterna de criaturas más no universo prejudicaria a perfeição de um espaço criado para refletir a glória de Deus.

A proposta aniquilacionista, é importante lembrar, encontra justificativa até em alguns clássicos textos bíblicos. No entanto, tal proposta esbarra no mais duro adversário: assim como o universalismo - que apregoa amor divino incondicional e salvífico para todos os seres de todas as épocas, já que a manifestação plena do amor de Deus destrói todo o mal e convence convertendo a todos -, a proposta aniquilacionista não satisfaz à maioria dos religiosos, já que, para estes, muito mais interessante do que gozar a presença eterna de Deus no céu, é saber que poderão dizer "bem feito!" para a imensa maioria das criaturas perdidas neste mundo, às quais Deus tanto ama.

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