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Graduado em Artes Cênicas, Teologia e Ciências Sociais. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF, Doutor em Sociologia pela UERJ e Pós-doutor em Sociologia Política pela UENF. Pesquisador de Relações Raciais, Sociologia da Religião e Teoria Sociológica. Professor do Instituto Federal de São Paulo.

sábado, 7 de setembro de 2013

"É a educação dos pais, seu estúpido!"

No panteão de frases antológicas que entraram para a história, encontra-se uma que tem inspirado políticos e políticas mundo afora. Na bem sucedida campanha presidencial do estadunidense Bill Clinton, James Carville escreveu num quadro: "é a economia, seu estúpido!", no intuito de chamar a atenção de um desatento correligionário seu para o foco que deveria ser prestigiado naquele momento pré-eleitoral.

Tal frase, que poderia ser a chave para quase tudo num mundo economicamente globalizado e conectado, não encontra respaldo no Brasil, quando o assunto é mortalidade infantil. Sim, para muitos, o que explicaria a taxa de mortalidade seria a falta de recursos nos lugares de menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que, entre outras variáveis, analisa o acesso à água e esgoto tratados, bem como à renda mínima por uma família. A taxa de mortalidade, ao contrário do que se pensava, está muito mais ligada à educação dos pais do que à falta de dinheiro ou às condições mínimas de saneamento de uma localidade.

Pesquisa do Estadão Data mostrou que entre 232 variáveis testadas, nenhuma influi mais nas mortes na infância do que a falta de escolaridade dos pais. Quanto maior o analfabetismo de adultos, maior a taxa de mortalidade de crianças. Numa comparação entre os dois pólos mais distantes, a pesquisa, também referendada por Celso Simões, do IBGE, mostrou que, em municípios como Olho D´Água Grande (AL), 50 crianças de até 5 anos de idade morrem a cada ano, sendo que a taxa de analfabetismo dos adultos é de 46%. No outro pólo, a cidade de Blumenau (SC) tem a taxa de mortalidade cinco vezes menor, sendo de apenas 2% o analfabetismo entre a população adulta. 

A variável alfabetização dos adultos tem duas vezes mais impacto do que a variável pobreza na questão da mortalidade infantil. A variável acesso à água e esgoto tratados aparece apenas em terceiro lugar, sendo que tal variável quase sempre foi focada como a maior responsável pelas mortes de crianças, já que o saneamento básico era tido como uma variável praticamente indiscutível ao se debater tal temática.

O mais interessante de tudo é a explicação dada a tal fenômeno social: as pesquisas qualitativas mostram que, "ainda que não tenha saneamento básico, se a mãe tem um pouco de educação, consegue que o filho tenha acesso aos programas sociais do governo, o que evita a morte da criança", segundo Celso Simões. Por outro lado, "com um pouquinho de escolaridade, as mães já podem reconhecer os principais sintomas das doenças que acometem seus filhos e procurar a adequada ajuda".

Por conta disso, antes de referendar a crítica a programas sociais, que muitos chamam de "esmola para quem não quer trabalhar", seria interessante analisar os números do impacto de tais programas para a evitação da mortalidade infantil no país. Fora que, com a obrigatoriedade de se ter as crianças na escola, no longo prazo se estará formando adultos com um mínimo de educação formal, o que evitará a morte de um imenso contingente de crianças brasileiras. Se ainda são entendidas como ações pontuais e não estruturais, não se pode negar, à luz dos números da pesquisa aqui analisada, que, no longo prazo, poderão ser reconhecidas como ações estruturalmente transformativas. Então, ao que não atentava para o principal foco, mais do que pobreza e falta de saneamento, é a educação dos pais, seu estúpido!

liberdade, beleza e Graça...

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

"A Mídia Ninja e o novo paradigma da informação"

Criada em 2011 pelos jornalistas Bruno Torturra e Pablo Capilé, ela já está sendo chamada de "uma importante alternativa à grande imprensa". Trata-se da agora já bem conhecida Mídia Ninja. Depois das manifestações que tomaram e ainda tomam as cidades brasileiras, o NINJA (Narrativas Independentes Jornalismo e Ação) passou de um grupo marginal a protagonista de um importantíssimo momento histórico do Brasil. 

Oriundos e ainda ligados a diversos movimentos sociais de esquerda, "os ninja", que é como são chamados, se dizem cansados de um processo malévolo de manipulação da informação, o que faz com que referendem a ideia do Do It Yourself (Faça Você Mesmo), tão caro a um mundo cada vez mais amante do empreendedorismo. Para justificar tal lógica, o grupo lança mão de uma base móvel da fazer inveja a qualquer feira de ciências (um carrinho de supermercado adaptado como central de informação) e de uma quantidade imensa de celulares, tablets, smartphones e câmeras digitais. Todo esse material é usado para gravar acontecimentos em fluxo de vídeo, o que descarta o processo de edição, tão criticado pela capacidade de enviesar quaisquer notícias, a depender da vontade do grupo que as veicula.

Por conta de sua lógica pulverizada de trabalho, tal como no Wikileaks, qualquer pessoa pode ser fonte de informação, desde que consiga manter a base em que se assenta tal movimento; autenticidade das imagens e ausência de tratamento com cortes e seleções. Assim, o que se vê no que é apresentado pelos integrantes de tal movimento é "o que realmente aconteceu, sem manipulação", como querem seus idealizadores. Deste modo, sobram informantes nas ruas, pois será sempre impossível para a grande mídia estar em todos os lugares ao mesmo tempo, coisa que acontece com a Mídia Ninja, visto que ela recebe informações e imagens de todos os pontos, pois "sempre tem um ninja lá".

É claro que um movimento com essa envergadura chamaria demais a atenção, sobretudo após a cobertura das manifestações de junho, mas a liderança do grupo, que inclusive já concedeu entrevista ao Roda Viva, da TV Cultura, não teve problemas para responder a uma questão levantada pelo senador Aloysio Nunes Ferreira, do PSDB, sobre a natureza do financiamento de tal empreitada. Sem qualquer constrangimento, Torturra e Capilé informaram que - como movimento cultural que já tem uma década de existência - o grupo onde se aloca a Mídia Ninja recebe verbas de particulares, de eventos culturais por ele produzidos e de editais governamentais, que são - é importantíssimo lembrar - abertos a quem quer que queira culturalmente produzir.

A questão do senador peessedebista encontrou lugar, pois tal político tinha certeza de que se tratava de "um grupo financiado pelo PT". A resposta do grupo foi taxativa: "qualquer iniciativa popular estará sempre distante do PSDB, pois tal partido não corresponde aos anseios dos movimentos sociais populares". Assim, não ligado a partidos, mas atento aos pleitos de movimentos que se aproximam mais dos partidos de esquerda, o Coletivo Fora do Eixo, do qual a Mídia Ninja faz parte, não tem crise ao reconhecer que suas posturas incomodarão mais os partidos de direita, onde o PSDB e o DEM se encontram, do que os de esquerda, onde o PT e o PSOL se alocam.   

Sem a Mídia Ninja, dificilmente a cobertura das manifestações de junho teria o alcance que teve. Tanto é verdade isso que as manifestações que continuam são praticamente ignoradas pela grande mídia, sobretudo porque esta é execrada onde quer que tente "construir sua notícia". Numa atitude bastante "ninja", um aposentado paulistano flagrou o repórter da Rede Globo Cezar Menezes "montando" um depoimento reacionário em plena Avenida Paulista, coração da maior cidade do país. Gravando tal descarada montagem, o senhor conclamou o povo ao redor - e foi prontamente atendido - ao já bastante conhecido coro de "O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo!" (o vídeo está no Youtube, plataforma bastante usada pelos "ninja", assim como o Facebook e outras redes sociais).

Não se pretende neste espaço endeusar a Mídia Ninja, pois onde tem poder, a possibilidade de corrupção estará também presente. No entanto, será interessantíssimo acompanhar uma eleição presidencial onde, para além da visão da grande mídia de massas, teremos a "possibilidade ninja" de conhecer o mundo ao nosso redor pela "grande massa de mídias". Com isso, será bem mais fácil desmascarar as vítimas das bolinhas de papel.  

liberdade, beleza e Graça...

terça-feira, 23 de julho de 2013

"Estado laico não é igreja despolitizada"

Em momentos como o que é vivido atualmente no Brasil - com a visita do papa Francisco à (ainda) maior nação católica do mundo - o debate sobre o laicismo do Estado volta à tona. Por conta disso, abundam nos meios de comunicação os textos acerca de temas-tabu para a igreja, tais como aborto, pílula anticoncepcional, casamento gay e adoção por casais homoafetivos, bem como se apresentam temáticas sobre a ainda forte influência da religião nas políticas públicas do Estado.

A pergunta que se coloca, então, é: se o Estado é laico, por que essa preocupação tão grande sobre o que a igreja tem a dizer acerca das coisas de uma nação que se diz não mais regida pela religião? A resposta é simples: tudo isso acontece pura e simplesmente porque o Estado não é laico; a igreja ainda manda, e manda muito! O Brasil nunca foi laico, e dificilmente será. Os crucifixos ainda abundam nas repartições públicas, incluindo as câmaras legislativas, o que mostra que toda e qualquer decisão tomada, pelo menos simbolicamente, estará sempre referendada pelo viés religioso. E ai daquele ou daquela que tentar retirar tais amuletos do lugar!

Aceitando, pois, o laicismo "de mentirinha" do Estado brasileiro, o foco passa a ser de que forma o Estado se deixa envolver pela igreja e de que maneiras o mesmo Estado invade o campo da fé. Qualquer cabeça pensante sabe que será impossível falar em Estado laico com uma Câmara e um Senado repletos de religiosos dos mais variados matizes, como é o caso brasileiro. Assim, se torna necessária a desmistificação da ideia de laicismo estatal, visto que tal ideia pode muito negativamente influenciar cabeças menos esclarecidas, haja vista o fato de que pode se confundir a separação em relação ao Estado com separação em relação à política, o que faria da religião o pior inimigo de nossas almas.

Por mais que nossos líderes religiosos tenham pouco acesso (e talvez também pouco anseio) à boa formação e quase nunca busquem por uma informação mais crítica, se atendo quase sempre a uma forma muitíssimo manipulada de acessar o mundo (em geral, via televisão aberta), isso não dá a eles o direito de contribuir para uma alienação ainda maior das classes menos favorecidas, maior contingente das igrejas brasileiras. Num momento político como o que vive o Brasil, ignorar o clamor das ruas, oferecendo apenas um "vamos orar", é quase uma postura fascista. Concordando com uma ideia do pensador italiano Antonio Gramsci, se um líder religioso usa a religião de forma a ignorar a situação de opressão do povo, referendando que tudo deve ficar como está, deverá ser destituído do púlpito, assim como um capitalista que oprime seus trabalhadores deverá ser destituído da fábrica.

É triste olhar para as igrejas e, conversando com as pessoas, incluindo os jovens, que já votam, perceber que elas não sabem o que significam as siglas dos partidos políticos e muito menos qual ideologia e bandeiras os mesmos defendem. A bem da verdade, nem os líderes - salvo raríssimas exceções - têm tais informações. Pensar que separação da igreja em relação ao Estado é isso, é contribuir para o inferno na terra, é voltar ao medievalismo religioso, contemplando também agora (e Lutero deve estar se revirando na tumba) o neo-medievalismo evangélico (não dá para usar protestante aqui, pois os evangélicos não são mais protestantes). 

Então, lançando mão do conceito de intelectual orgânico, do mesmo Antonio Gramsci já aqui citado, fica aqui proposta uma saída um tanto interessante ao imbróglio que aqui foi analisado: para além da catequese - de qualquer denominação religiosa, mas sobretudo a evangélica, que cada dia mais toma a nação, desbancando o catolicismo de sempre - que as igrejas adotem aulas de política e debates sobre questões que são caras ao país e que definitivamente possam mudar estruturalmente essa nação tão desigual. Que a Escola Bíblica Dominical guarde pelo menos um domingo por mês para se tornar Escola Política Dominical

Isso poderá realmente mudar a nação, já que os católicos só fazem diminuir - e a Teologia da Libertação se tornou praticamente desconhecida dos atuais católicos - e o crescimento vertiginoso dos evangélicos é mais motivo para vergonha do que para júbilo. Agora, para os que não gostarem da ideia aqui apresentada, fica uma "nova" opção: ligue a tevê para ver o bispo Macedo, o pastor Silas Malafaia, o missionário RR Soares, o apóstolo Valdemiro ou até mesmo a Canção Nova, que, aproveitando-se da festa da presença do papa Francisco no Brasil, está oferecendo indulgências (e estão chamando de indulgências para pagar pecados mesmo, tal como na Idade Média!) em troca de dinheiro e ouro, que estão sendo pedidos pelos empolgados padres de plantão. Se preferir, então, já que esta é uma nação democrática, oferte seu dinheiro e seu ouro e contribua para o inferno na terra, antes de ir para os quintos dele mesmo!

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segunda-feira, 8 de julho de 2013

"A Teoria Sociológica e o barulho das ruas"

Um mês após o início das manifestações que tomaram dezenas de cidades brasileiras, é chegada a hora de uma análise mais sóbria e portanto menos apaixonada acerca de tal fenômeno social. No calor dos fatos, pouco se podia afirmar com certeza, uma vez que nem a classe política, nem a imprensa e nem os intelectuais sabiam o que de fato estava se dando no Brasil. No entanto, após ouvir os vários órgãos e movimentos que se envolveram nos barulhos das ruas em junho, já é possível tecer ilações - e até certezas - sobre o que realmente significou e significa tudo isso.

Em primeiro lugar, é preciso derrubar o mito que entende que o Facebook é o responsável pelo movimento que sacudiu o país. Não tirando o mérito das redes sociais no quesito facilitação de encontros, é necessário perceber que uma confluência de fatores gerou o barulho do qual 20 centavos de aumento da passagem de ônibus em São Paulo foi apenas o pavio. Um mês depois do início do movimento, um usuário do "face" organizou uma greve geral para o dia 1 de julho, mas, ainda que tivesse mais de um milhão de confirmações, não levou ninguém às ruas, desmentindo a ilusória percepção dos amantes das plataformas virtuais. A grande imprensa continuava a mostrar enorme força; os sindicatos de trabalhadores, idem.

Numa análise detida sobre fatos que marcaram o primeiro semestre de 2013, o jornalista Mauro Malin elencou uma grande séria de acontecimentos absurdos que tinham tudo para gerar imenso ódio popular, mas que, por razões que ainda não podem ser totalmente explicadas (a mais provável é que faltava mesmo um "pavio", um estopim vindo de um movimento social organizado, protagonismo que coube ao Movimento Passe Livre), gerou a mais significativa mobilização popular desde o levante pelo impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.

Com o apoio da Sociologia de Jürgen Habermas, é possível situar três espaços para a atuação de atores políticos: Sistema Político, Sistemas de Ação (especializados em termos de função) e Mundo da Vida. Segundo a ótica habermasiana, as sociedades complexas possuem uma estrutura intermediária que liga o Sistema de Ação e o Mundo da Vida ao Sistema Político. Tal estrutura é denominada Esfera Pública. É com a organização da sociedade civil na Esfera Pública que se pode construir uma opinião pública que intenta pressionar os governos a atenderem os pleitos dos coletivos sociais. Para tanto, os pleitos são organizados, as bandeiras são levantadas, as lideranças são apresentadas para sentar-se à mesa com os governantes e a consequente pressão popular sobre os mandatários se inicia. Sem isso, pode até haver manifestação social, mas não haverá movimento social

A fluidez dos pleitos - movida pela ausência de bandeira e liderança comuns - fez com que o barulho de junho ficasse muito no nível da manifestação social. Recebidos pela presidenta, apenas os membros do Movimento Passe Livre, já que era o único movimento a ter nome, liderança e bandeira definida, que era a revogação do aumento da passagem paulistana, o que foi conseguido. Alguns dias depois, uma outra bandeira foi definida e a liderança organizada; então, a Proposta de Emenda Constitucional 37, que tiraria o poder de investigação do Ministério Público, abrindo ainda mais margem para a corrupção no país, foi votada e rejeitada pelos políticos, já que a pressão popular - então organizada em movimento - ainda se fazia sentir. Sem definição de liderança e bandeira, os outros pleitos das ruas foram se calando, o que impediu que o Mundo da Vida, bem representado pelo Facebook, chegasse à Esfera Pública e trouxesse uma mudança estrutural de que tanto o país necessita. 

Segundo o sociólogo espanhol Manuel Castells, referência no estudo das redes sociais, e para quem o Congresso brasileiro deveria ser dissolvido, já que não mais representa o povo, Dilma Rousseff foi a única líder que ouviu as vozes das ruas e dispôs-se a fazer algo que lhe pudesse ser resposta (o Occupy Wall Street está de mãos abanando até hoje!). Embora não precisasse propor um plebiscito ou referendo popular, visto que já há no Congresso Nacional uma série de PEC´s que, se aprovadas, trariam a tão sonhada reforma política, a presidenta se mostrou extremamente democrática e sensível ao mea-culpa que todo governante necessita fazer. 

Se tal reforma conseguir fazer com que empresas privadas não mais possam bancar campanhas políticas, se conseguir instaurar o voto distrital, com mais chances de o povo cobrar seus eleitos, além de conseguir também aprovar um marco regulatório das comunicações no Brasil, estaremos a caminho de uma mais do que justa revolução cultural, necessária há tempos em terras tupiniquins. Sem isso, continuaremos vítimas dos capitalistas, que cobram muito caro pelas campanhas que bancam, de corruptos governantes, de quem nunca veremos a cara pessoalmente, e da Rede Globo, com seu articulista Arnaldo Jabor, que é a caricatura da caricatura do que há de mais perverso num capitalismo imbecil e imbecilizador.

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segunda-feira, 17 de junho de 2013

"Enfim, o povo está de novo nas ruas!"

Com o enfraquecimento dos movimentos sociais, por conta de uma sagaz retórica reacionária que prega que "não adianta nada protestar, pois nada vai mudar", dificilmente se imaginaria uma tomada de posição como a que acontece há alguns dias no país. O povo, enfim, tomou as ruas e passou a exigir uma atenção que só estava sendo dada a algumas obras "para inglês ver", obras essas para a copa do mundo de futebol que se aproxima e que será aqui mesmo no Brasil.

O movimento que hoje sacode o país começou por conta de um aumento considerado abusivo para o transporte público na cidade de São Paulo, a mais próspera da nação. Dos vinte centavos que provocaram a indignação do Movimento Passe Livre, no entanto, pouco resta hoje, visto que são vários os grupos pleiteando direitos, o que só fez universalizar o levante social que agora toma as ruas e as mais variadas mídias, sobretudo as eletrônicas.

Faltando exato um ano para as eleições, um movimento dessa magnitude não poderá ser ignorado, haja vista o fato de que é um levante popular que pode ser computado para o mal ou para o bem, a depender da sagacidade da classe política. Pelo início das respostas da polícia militar paulista, o saldo se fez bastante negativo, o que fez com que o governador Geraldo Alckmin repensasse a truculência por ele incitada na semana passada, truculência essa que chegou a ser bastante elogiada pelo governador do PSDB.

A grande mídia, como sempre, e respeitando o seu caráter reacionário de longa data, tratou logo de chamar os manifestantes de "vândalos irresponsáveis", chegando a dizer que a maioria dos jovens que lá se encontravam se manifestavam por algo que nem usam, visto que são de classe média e nem se utilizam do transporte público. A pergunta que fica é: quem disse que uma pessoa só pode se manifestar quando o assunto lhe diz respeito diretamente? Porventura a dor alheia deve ser ignorada e a política adotada deve ser a do "farinha pouca, meu pirão primeiro"?

Muito mais sagazes do que o governador paulista, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o ex-presidente Lula e a atual presidenta Dilma Rousseff manifestaram-se de forma a contradizer aquilo que agora até o governador Alckimin quer contradizer. Para FHC, "chamar os manifestantes de baderneiros é um erro". Para Lula, "ninguém consciente pode ser contra o movimento". Para Dilma, "manifestações pacíficas são legítimas no país". É claro que tudo se passa apenas agora, depois que o melhor e o pior já aconteceram; a polícia já bateu, o povo já se indignou e a mídia (ah, a grande mídia...) já mudou de lado!

Por mais que seja uma maldade proferir tal frase, tem tiro no olho que vale a pena ser tomado! Isso porque é o tipo de tiro que é tomado pelas "pessoas certas", isto é, por quem, na visão dos que almejam os votos, não deveriam nunca tomar. Em meio aos confrontos entre a tropa de choque e os manifestantes paulistanos, dois jornalistas da Folha de S. Paulo foram atingidos com balas de borracha nos olhos, o que pode fazer com que um deles perca a visão. Tal acontecimento fez mudar radicalmente a abordagem e posição dos meios de comunicação, que passaram a focar o abuso e a truculência policial, já que sentiram na pele dos seus o que é estar à mercê de uma polícia militar que só faz jus à uma época em que a palavra direito servia apenas para a justificação de torturas, exílios e mortes cruéis. 

O melhor de tudo é que a reação em cadeia, que não estava programada, aconteceu e já são várias as metrópoles com ruas e monumentos tomados por manifestantes. Agora não são apenas os vinte centavos paulistanos que contam, mas um montante engasgado de direitos não contemplados; educação, saúde, segurança pública, transporte digno e resposta responsável pela gastança com obras faraônicas para eventos que jamais terão a potência de um povo educado e saudável. É provável que as manifestações não cheguem a todo o resultado esperado e que os vinte centavos paulistanos venham mesmo a ser pagos pelos que não deveriam pagar mais por algo já bastante caro, embora extremamente precário. No entanto, é bom que se veja que o movimento popular não morreu. É bom saber que o povo ainda tem gana de ir às ruas e exigir um mínimo de respeito de quem parece não estar "nem aí para a hora do Brasil". Pode ser que não consigamos pagar menos por um transporte já bastante indecente, mas só de saber que o povo acordou, já dá um alento na alma, traz lágrimas sinceras aos olhos. O povo está nas ruas, meu Deus! O povo está vivo! Ainda é possível sonhar.

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segunda-feira, 10 de junho de 2013

"Caminhos da espiritualidade"

O texto bíblico de Gênesis 21:14-21 traz uma das passagens mais tristes do livro sagrado dos cristãos; trata-se do despedimento da escrava Agar e seu filho Ismael. Como mostra o primeiro livro do cânon do Antigo Testamento, Agar era escrava de Abraão e Sara, sendo que esta última era estéril e, portanto, mulher inferiorizada numa sociedade onde a fertilidade e a grande prole, sobretudo de meninos, eram sinônimos de bênção divina. Em tal contexto, era muito normal a escrava ser usada para que o patrão pudesse ter um filho e ser socialmente bem estimado. Agar fora usada para isso e Ismael era o fruto.

Num belo dia, diz o texto, Abraão recebe mensagem teofânica que o tem por agraciado e digno de receber um filho de sua própria esposa, já idosa como ele, que já tinha cem anos de idade. A notícia não é totalmente crida em princípio, visto que a idade de ambos não ajudava. No entanto, a promessa de Javé se cumpre e Sara dá à luz um menino, Isaque. Abraão já não precisava da escrava para ser "mais homem" e o filho dele com Agar, vivendo o que quase todo pré-adolescente vive, caçoando do irmão menor, incomodava à patroa Sara, que pediu que o marido mandasse embora o seu próprio filho e a escrava Agar. Abraão se entristece muito, mas, ouvindo Javé, decide atender ao pedido da esposa, despedindo Agar e Ismael, com apenas um bocado de pão e um odre cheio de água. Mãe e filho pequeno andam errantes pelo deserto de Berseba, caminhando em direção à inevitável morte. O pão acaba, a água acaba.

A condição de mãe faz com que Agar não consiga participar da morte do filho pequeno, o que a impele a deixar o menino, provavelmente dormindo ou desmaiado de fome e sede, debaixo de uma daquelas tristes e secas árvores do deserto. Ao longe, a ex-escrava lamenta a má sorte e provavelmente justifica sua posição de inculpável naquela história toda, já que fora usada e expulsa depois, uma vez que não teria mais tanta "serventia" para os patrões. Ismael, voltando a si e percebendo-se só, chora copiosamente, estando já Agar a chorar e a provavelmente praguejar e lamentar a vida, com toda sorte de aceitáveis justificativas. Javé ouve o menino; ouve o choro de Ismael e ordena que Agar volte para pegá-lo, mostrando em seguida um milagre não percebido: um poço de água surge diante de Agar e seu filho. Água para ambos, forças para caminhar e promessa de que uma grande nação surgiria dali.

Embora o padrão mais aceito de família seja a estrutura pai/mãe/filhos, tal estrutura já não responde aos dramas da sociedade moderna. Já não é raro ver-se famílias onde existe o pai e não a mãe, onde existe a mãe e não o pai, onde existe o casal e não os filhos, onde existem os filhos e não os pais, onde aparecem dois pais, onde aparecem duas mães e até mesmo a chamada família uniparental, onde há apenas um integrante. A estrutura familiar mudou radicalmente com o passar dos anos e a mensagem embasada numa estrutura tradicional está cada vez mais obsoleta para a sociedade contemporânea. É como se as mensagens pregadas sobre a família não dissessem mais respeito a grande parte das casas que por elas são acessadas. Nesta direção de pensar, o texto bíblico aqui citado talvez possa ser fonte de inspiração para muitas mulheres abandonadas com os filhos, por exemplo.

Ao se atentar para o cuidado que Deus dispensa a Agar e Ismael, é possível inferir que a bênção do Senhor também pode estar aonde a estrutura familiar ganhou configuração diferente da tradicional. Não é porque não existe uma das partes da estrutura familiar mais "aceita" que a bênção obrigatoriamente vai faltar a uma família. É possível alcançar os mesmos lugares de uma família "normal", ainda que a configuração familiar seja apenas um pai com os filhos pequenos, uma mãe abandonada com sua prole etc. Apesar de toda desestruturação provocada por Abraão e Sara, Agar chega ao ponto que não é obrigatoriamente alcançado apenas por estruturas familiares "organizadas"; a ex-escrava, depois de secar as lágrimas e perceber o milagre da água, se percebe também detentora de uma bênção que a faz conquistar o mesmo que uma estrutura tradicional busca: consegue formar seu filho (o rapaz se torna flecheiro, profissão muito cara para uma época de grandes guerras) e o casa com uma mulher egípcia. O filho formado, o filho casado e o povo árabe para mostrar que, ao contrário do que muitos pensam, a bênção não respinga só em Israel.

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sexta-feira, 17 de maio de 2013

"Paralelos teológicos"

Uma jovem de 23 anos, filha de um sério pastor - e com formatura na graduação e casamento marcados para o final deste ano - faleceu de forma abrupta e pouco explicada. Uma adolescente de 17 anos, filha de um sério casal evangélico, após uma batida de carro, onde ela se encontrava dormindo no banco de trás, acabou na UTI de um hospital, sem garantias de que volte a andar um dia, tendo em vista a força com que sua coluna vertebral foi ferida. Conversando com um jovem sobre esses dois episódios, ouvi uma frase que deu motivação para o presente texto de reflexão teológica. A frase do jovem evangélico foi: "Mas para quem tem fé é mais fácil passar por isso". Discordei, afirmando categoricamente que fé não conta nessas horas e que o modo de passar por tais catastróficas situações depende do equilíbrio e da força emocional/psíquica de cada um. O rapaz discordou e disse que "se fosse assim, a força estaria no ser humano e não em Deus", o que para esse jovem não tem razão de ser. 

O debate então começou a versar sobre fé e confiança em Deus. Lançando mão de frases do próprio jovem, e tendo o arcabouço teórico do filósofo francês Jacques Derrida como chão argumentativo, passo a trabalhar num exercício intelectual de desconstrução. O rapaz, que afirma que segue a Bíblia como fonte de respostas, defendeu que "todo mundo tem fé, mas a fé em Deus é diferente da fé que todo mundo tem". Ao defender que todo mundo tem fé, o jovem trabalhou o conceito de fé assim: "se eu faço por onde e luto por algo, consigo alcançar o que quero". A fim de me exemplificar tal conceituação, o rapaz disse que se eu tivesse fé de que ao final deste ano estaria com um carro, bastaria trabalhar, dando aulas em universidades no próximo semestre, que, ao final do ano, o carro estaria em minhas mãos. Por conta disso, afirmei que não era preciso ter fé para tal, pois até um incrédulo de tudo e de todo poderia assim pensar, pois as condições para se alcançar tal carro estariam dadas e isso não careceria de fé alguma. 

O jovem perguntou então se eu tinha outro conceito de fé e eu disse que sim, mas que não falaria a ele, pois seria melhor ele mesmo buscar tal conhecimento, já que eu não dava respostas, mas apenas instigava perguntas. Dizendo-se conhecedor do caráter de qualquer pessoa que conversar com ele durante cinco minutos, o rapaz disse que eu não tinha outra maneira de conceituar fé, pois, se tivesse, a apresentaria a ele. Assim, meu modo de não responder às perguntas de meus alunos, mas apenas indicar como encontrá-las, foi tido como um blefe de minha parte, já que, ao fim e ao cabo, eu não saberia trabalhar a questão de outra maneira. Deste modo, inspirado por um debate que "pegou fogo", decidi trabalhar desconstruindo algumas das matrizes de pensamento cristão do rapaz que me provocou o presente paralelo teológico.

O jovem proferiu algumas frases: "todo mundo tem fé"; "quem tem fé, tem confiança, mas nem todo mundo que tem confiança tem fé"; "tem dias em que se é possível acordar com mais fé e, em outros, com menos fé"; "a fé da gente pode ser abalada, a depender da situação"; "ter fé em Deus é também obedecer a Deus". 

No entendimento teológico deste que vos escreve, ninguém, por si mesmo, tem fé. A fé é um dom de Deus, derramada como presente sobre alguns - e pode ser sobre todos os que pedirem -, em algumas circunstâncias especiais, nada tendo a ver com confiança. E, já que a Bíblia precisava ser o nosso chão de debates, decidi que a frase de Jesus de que "se alguém tiver fé do tamanho de um grão de mostarda, poderá ordenar que uma montanha se mova de lugar" seria uma bela ilustração da impossibilidade de o ser humano ter fé. Assim, o que o ser humano tem é confiança em um Deus que para ele já provou que pode fazer coisas incríveis, uma vez que ele, o ser humano, atribuiu tais ações ao Sagrado. 

Minha resposta ao jovem, então - resposta que ao vivo foi negada - é que, ao contrário do que ele pensa, a confiança difere da fé justamente na estrutura básica do argumento, uma vez que fé está atrelada a fiar-se e confiança está atrelada a confiar-se, já que só vem depois de se ter confirmada - até empiricamente - uma possibilidade. Para exemplificar, uso algo muito simples: uma criança muito pequena, ao ser incentivada a pular de uma mesa nos braços do pai, o faz pela fé na primeira vez, pois está fiada em que o pai a segurará, impedindo-lhe a queda. A partir da segunda vez, não há fé, pois a fiança dá lugar à confiança, visto que passa a haver a busca por uma confirmação de fiança, algo que já se espera, uma vez que, quando inicialmente se fiou (fé), o resultado foi satisfatório, gerando material para se confiar.

Confiança, pois, seria a postura de esperar por algo que tem razão de ser e estar, pois já se provou - até empiricamente - que é e está justamente onde se espera. Fé, por outro lado, é o total depósito de certeza no que não é e não está no lugar onde se espera, pois tal ser nunca foi conhecido e tal lugar nunca foi visitado. A confiança é um passo na direção do que já se experimentou; a fé é um total salto no escuro, um passo onde não se tem certeza de que haja chão. Também, e por outro lado, fé não pode ser atrelada à obediência, pois isso faria com que quem obedecesse mais, tivesse mais fé, o que não se pode confirmar como verdade, visto que quem obedece está atrelado a um corpus dogmático de leis que traz em si mesmo um considerável montante de razões, o que se coloca no caminho da confiança e não no da fiança. Fé, também, não pode ser algo abalado, pois o que se abala é a confiança, quando do momento de não confirmação de uma fiança anteriormente feita; a fé, que não é de natureza humana, fica sempre inabalável, já que os humanos abalos de toda natureza não têm poder para atingir e abalar tal dom. 

Portanto, lançando mão da reflexão teológica de Paul Tillich - para quem Deus, sendo o Absolutamente Outro, não existe; É - e do pensamento de teólogos e exegetas de linha crítica, deixo a final provocação acerca da fé em Deus: fé em Deus é conhecer e esperar pelo que não existe, com a plena e inabalável certeza de que Ele virá e fará.

liberdade, beleza e Graça...